Vera Pinheiro
Há muito tempo atrás, a tribo nativa
norte-americana Lakota (ou Sioux) vivia de forma simples, caçando búfalos nas
campinas para sua sobrevivência. Um dia, dois jovens índios saíram a caminhar,
atentos a qualquer movimento, quando vislumbraram no horizonte algo se movendo
com rapidez. Chegando mais perto viram que era uma linda mulher, envolta por
uma luz brilhante.
Os jovens tinham índoles diferentes: um deles
apenas apreciou a beleza da mulher, enquanto o outro dela se aproximou com
intenções de violentá-la. A mulher abriu seus braços e cobriu o conquistador
com seu xale, ambos ficando dentro de uma névoa. Quando a neblina se dissipou,
o outro jovem viu com espanto, saindo do xale da mulher o esqueleto do seu
companheiro, que logo se transformou em poeira soprada pelo vento. Comovido, o
jovem se ajoelhou perante a misteriosa mulher e pediu-lhe que fosse com ele
para ensinar à sua tribo os mistérios da vida e da morte. Ela concordou e pediu
que preparassem uma grande tenda onde toda a tribo pudesse se reunir.
Lá a mulher
mostrou um cachimbo feito de argila vermelha com um longo cabo de madeira, e
pediu que o cachimbo fosse usado em ritos sagrados para lembrar e honrar a
ligação dos seres humanos com todas as outras formas de vida, além de
reverenciar a Mãe Terra, pois cada passo que fosse dado sobre seu solo seria
como uma oração. Após esses ensinamentos a mulher se afastou e se transformou
lentamente em uma novilha de búfalo branco. Foi por isso que essa misteriosa
mestra foi denominada Mulher Búfala
Branca, detentora do cachimbo sagrado e de seus mistérios.
O relato deste mito faz parte das publicações da escritora
Mirella Faur, sobre a Mulher Búfala Branca, cujo ventre era Wakan, a causa
primeva de tudo, o princípio primordial da Criação na antiga tradição Lakota.
Reverenciado como o vazio cósmico, um receptáculo de infinitas possibilidades
de Criação, Wakan era descrito como um grande recipiente estrelado, contendo
inúmeras centelhas de vida adormecidas, esperando serem ativadas para se
integrarem à realidade terrena. O principio ativo e co-procriador era Skan que, semelhante a um relâmpago
cósmico, mergulhava no receptáculo sagrado e acordava as centelhas para a luz
da existência. E nós, como toda a Criação, somos essas centelhas de luz!
Nas tradições nativas, diz a pesquisadora e
escritora, a mulher era a representante de Wakan na Terra, responsável pela
continuação da vida humana, sendo um ser sagrado respeitado por todos. Ela
também tinha a missão de preservar e cuidar da paz e da harmonia dos
relacionamentos entre os membros do clã, com as outras tribos e com os reinos
da Criação. Eram as mulheres que criavam e cuidavam da complexa teia das
atividades e relacionamentos humanos, evitando conflitos e divisões e ensinando
como “caminhar suavemente sobre a
terra”.
Mesmo com a chegada dos conquistadores europeus,
que despertou a cobiça, a rivalidade e a violência entre as tribos, os
Conselhos das Matriarcas dos clãs e das Avós se empenhavam em restabelecer a
paz e relembrar a suprema lei da Criação: “viver em harmonia com todos os seres do círculo da vida”. As
decisões finais competiam às avós, por desfrutarem de muito respeito e honra
por sua sabedoria ancestral e experiência de vida.
Mirella conta que, desde tenra idade, os meninos
eram ensinados pelas mães a respeitar e vivenciar as qualidades femininas. Eles
viviam no meio das mulheres até os sete anos e aprendiam qualidades e artes
femininas como gentileza, respeito, compaixão, cozinhar, costurar, plantar,
colher, bem como manter as tradições e a harmonia, natural e humana. Quando
passavam para o círculo dos homens aprendiam as atividades masculinas, mas
jamais lhes era incutida a violência ou falta de respeito para com a Natureza, as
mulheres, as crianças, os idosos ou os doentes. “Um homem de respeito e
autoridade era aquele que cuidava bem da sua família e da sua tribo, preservava
os reinos da Criação e honrava as tradições e os ritos sagrados”, observa.
A LIÇÃO
Segundo Mirella Faur, a mensagem que a Mulher
Búfala Branca trouxe para o mundo contemporâneo é lembrar que todos os humanos,
independentemente de cor, origem, gênero ou situação social, fazem parte da
complexa teia da vida e “somente vivendo com respeito, harmonia e paz,
poderemos atravessar os períodos cruciais que nos aguardam”.
Para ela, a lição da Mulher Búfala Branca é: “viver em paz com todas as nossas relações”
e “tudo o que fizermos à grande teia
da Criação faremos a nós mesmos, pois somos um só ser vivo”. A expressão
”todas as nossas relações” é
usada para representar o círculo da vida ao qual todos nós pertencemos,
simbolizado pelo cachimbo sagrado. O bojo feito de argila vermelha representa a
Terra e no seu interior está gravado um búfalo, significando todos os seres de
quatro patas, e também a abundância da Terra que sustenta toda a vida. O cabo
ou tubo do cachimbo, feito de madeira, simboliza tudo o que cresce sobre a
terra. As doze penas que o enfeitam são de águia e descrevem as criaturas que
voam, enquanto as conchas representam o reino aquático. Ao acender e fumar o
cachimbo reúnem-se os elementos (associados com as ervas, a chama, a fumaça, as
cinzas) e também todos os reinos da Criação. A oração que acompanha o ato de
fumar o cachimbo é direcionada em benefício de todos e do Todo, e é o objetivo
principal desse rito sagrado.
Mirella assinala que a Mulher Búfala Branca
continua se comunicando conosco através das visões e mensagens recebidas por
muitas mulheres contemporâneas. Um comovente testemunho é o encontrado em uma
linda canção, recebida em uma visão pela xamã, compositora e divulgadora dos
antigos rituais sagrados, Brooke
Medicine Eagle, sugerindo refletir e colocar em prática esses atuais e
necessários conselhos:
Mulher Búfalo está chamando!/ Quem vai responder a
ela?/ Ela está chamando luz, ela está chamando paz! Ela está chamando o
espírito, ela está chamando você! Mulher Búfalo está chamando!/ Quem vai responder
a ela?/Eu responderei a Ela!/Nós responderemos a Ela!/
Como
trazer os ensinamentos da Mulher Búfala Branca para a realidade atual, em que
os diferentes círculos da existência parecem não se cruzar, e quando o fazem,
são permeados de conflitos e contradições? A Mulher Búfala Branca nos ensina a
lição da harmonia com todos os seres do círculo da vida e, não à toa nem por
coincidência, que a Matriarca da Primeira Lunação, “A Que Fala Com Todos Os
Seres”, é reverenciada nesta época, em janeiro, justamente para nos ensinar o
diálogo com todas as manifestações de vida. Somos uma grande irmandade
universal vivendo no colo da Mãe Terra e o princípio da unidade nos sugere
honrar, amar e respeitar todos os seres em sua forma e em sua individualidade.
Devemos
caminhar com suavidade e delicadeza sobre a Terra, com a consciência de que
todas as formas de agressão ao solo são capazes de feri-la. Quanto mais esse
entendimento estiver translúcido em nossas mentes, mais os nossos corações
sinalizarão o respeito que devemos ter com todos os seres da existência, a
começar por aquela que é a nossa Mãe, a que nos deu a vida e todas as suas
inquietantes possibilidades.
Assim como a reverência
à Mãe Terra e por todas as formas de vida, pois tudo veio da divina Criação, a
Mulher Búfala Branca nos relembra os sentimentos de amor e gratidão ao Grande Espírito
pela chama sagrada da nossa existência e precisamos nos conectar com a nossa
sagrada e luminosa centelha de luz interior, a que anima o nosso ser. A
tradição do cachimbo sagrado é uma forma de reverenciar todos os seres, vivam
eles na terra, no ar ou nas águas, e com eles os humanos precisam harmonizar-se
para o seu bem, o bem de todos e o bem do Todo.
E a busca da harmonia vai
além, deve estender-se aos próprios humanos, para que se relacionem em paz, com
amor e respeito por sua sacralidade e pelo sagrado que o outro é, sem que
ninguém se considere melhor do que outrem, já que estamos, todos, em um
processo de evolução humana e espiritual. Que jamais nos falte humildade,
portanto, pois todos os seres são sagrados. Os humanos, apesar de suas
limitações e imperfeições, também o são. Que todos os humanos sejam despertados
pela grandeza, inspiração, beleza e sabedoria do Grande Espírito, que nos mostra
o caminho e nos ensina a caminhar, mas depende de nossa boa vontade seguir as
suas orientações. Em caso de desconexão com a sacralidade de todos os seres, a
Mulher Búfala Branca nos instrui a, primeiro, reconhecer-nos sagrados; depois,
a ver o outro como sagrado também. A partir disso, toda a Natureza será
reconhecida e reverenciada com amor e gratidão.
Outro dos ensinamentos
preciosos da Mulher Búfala Branca diz respeito à forma como criamos os filhos
para o convívio com as mulheres, amando-as e respeitando-as na totalidade do
seu sagrado ser, para uma significativa e harmônica troca entre o feminino e o
masculino complementares, não opostos e sem qualquer forma de subjugação física,
mental, espiritual, emocional ou energética.
Extrai-se, ainda, do
mito da Mulher Búfala Branca que o homem movido por paixões, atraído apenas
pela beleza exterior da mulher, não é merecedor de alcançar a sua beleza
divina. Esse privilégio é concedido apenas aos que não se deixam consumir pelo
desejo físico em detrimento dos valores do Grande Espírito que habita na mulher,
desconhecendo também as necessidades do próprio espírito. Mas esse é um longo
caminho a percorrer no processo evolutivo masculino, enquanto as mulheres
reafirmam e crescem nas qualidades e virtudes femininas. Que esta Grande Mãe
nos agigante em paciência, amor e consideração uns pelos outros para que vivamos
em paz, harmonia e equilíbrio. Que seja assim.
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