sábado, 13 de novembro de 2010

Poder voltar (*)

Vera Pinheiro

          Certa vez, despachando com o Vice-Presidente da República José Alencar, ele me deu uma grande lição de vida, das tantas que deu a todos, durante a sua enfermidade: “O importante na vida é poder voltar”, frase que lhe disse o pai em 1946, quando deixava a casa paterna para trabalhar em Muriaé como balconista em uma loja de tecidos. 

          “Quando saí de casa, aos 14 anos, pedindo “bênção, mamãe”, “bênção, papai”, ele falou comigo: “Meu filho, não se esqueça: o importante na vida é poder voltar! Voltar a uma pessoa, a uma família, a uma casa, a uma cidade, a um emprego, a um cargo, a uma instituição, a uma entidade, a uma situação... Voltar! Poder voltar significa viver altivo, de cabeça erguida”, explicou José Alencar, e eu ouvia comovida, rememorando convívios e experiências do passado. Seu Antonio estava coberto de razão e o filho cumpriu à risca, desde o momento em que estava de saída para o mundo com pouco mais de nada na mala, mas municiado de vontade férrea e de crença em si mesmo.

          Voltar a um lugar em que moramos um dia é marcar encontro com histórias inesquecíveis, que fazem parte de nossa trajetória. Retornar, ainda que por pouco tempo, é reverenciar os aprendizados e homenagear a vida que nos permitiu ultrapassar fronteiras e ampliar horizontes. Que bom poder voltar e replantar raízes das quais jamais nos afastamos. Por não ter qualquer razão para afastamento definitivo, reencontrar portas e corações abertos faz querer voltar, mesmo que seja para partir novamente e reconstruir a saudade.

          Voltar a uma cidade onde estivemos como visitantes nos permite lembrar a circunstância anterior que nos levou até lá. Feliz de quem tem boas lembranças, que façam brotar suspiros no peito e lágrimas de emoção nos olhos ao repetir o passeio, mesmo que tudo seja diferente de outrora, e é. Afinal, o tempo passa e a nossa paisagem interior se modifica, assim como o jeito de olhar os instantes e de vivenciá-los. Ainda bem que mudamos, porque estagnação não se coaduna com o dinamismo da existência.

          Voltar a um emprego mostra que a ruptura dos laços profissionais não carregou prejuízos ao relacionamento no plano pessoal, que estabelece o primeiro contato para traçar objetivos em comum. Que bom saber que não há perspectiva de desemprego porque, desfeito o vínculo laboral, a oportunidade está sempre aberta, ainda que outro nos substitua na vaga que ocupávamos.

          E quem não gostaria de rever, emocionado, a casa onde nasceu, a primeira escola, algum trecho da infância ou algo que acenasse para a adolescência já distante? No entanto, nem todos os prédios são preservados, eles dão espaço para a modernidade e seus lucrativos condomínios verticais. É enorme o contentamento dos que tiveram o privilégio de poder voltar ao chão onde o umbigo foi enterrado, bem como o dos que viram o quadro negro onde escreveu o primeiro bê-á-bá. E encontrar uma antiga professora produz uma emoção tão profunda e incontida que não é possível narrar, senão pela voz embargada que dá vez ao silêncio.

          Reencontrar pessoas que fazem parte de nossa vida, mas não do nosso cotidiano, é festejar a alma em sorrisos de prazer. Para isso, é fundamental não haver mágoas que desabonem a conduta de quem reaparece de surpresa. Se as recordações são boas, bastam umas poucas palavras para que a velha intimidade se restabeleça, e dali em diante nova etapa começa. Por isso a alegria de rever o primeiro amor, independente de qual seja a última anotação do estado civil feita em cartório. A sensação é a de que ter vivido aquela época valeu qualquer pena, como os desencontros e as despedidas que hoje a gente nem sabe por que aconteceram. Em vez de cobranças, um olhar maduro sobre os acontecimentos, que não são maiores do que os sentimentos.

          Entre risos, beijos e abraços, a gente nem percebe que envelheceu nesses anos de ausência. Não importam as rugas e um ou outro probleminha de saúde que modificam o visual e o comportamento, se comparados com a juventude. São, sim, outros tempos. Mas e daí? O que importa é poder voltar àquela pessoa, que jamais saiu de onde estava: dentro do coração, adormecida num cantinho privilegiado, a espera da segunda e derradeira chance.

(*) Crônica publicada na edição de 13 e 14 de novembro de 2010 do jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS.

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