sábado, 6 de novembro de 2010

Olhar sem ver (*)

Vera Pinheiro

            Minha filha Camila e eu almoçávamos na Praça de Alimentação de um shopping de Brasília e já tínhamos acabado a refeição quando uma moça uniformizada se aproximou e pediu licença para retirar os pratos. Disse-lhe que sim e agradeci, e antes que recolhesse o que havia sobre a mesa, Camila exclamou: “Que bonita a tua maquiagem!”. A moça se surpreendeu, mas logo sorriu de toda a boca, agradeceu e se retirou com a pilha. “Que bonito o teu gesto, filha!”, elogiei, segura da sinceridade dela e de que o agrado fora bem recebido. “E quem repara nessas pessoas que estão trabalhando aqui, mãe? Para a maioria, elas são invisíveis”. “A menos que cometam algum erro”, emendei.

            Realmente é assim que acontece. As pessoas cruzam umas com as outras e não se veem, não reparam em quem está ao lado ou à frente, quem atende em uma loja, serve um café ou bota uma bebida no balcão de um bar. Falam com quem presta um serviço como se estivessem diante de um caixa eletrônico, com a diferença de que para uma operação bancária a máquina precisa de senha, o que corresponde a um cumprimento humano. Dizer “Bom dia”, “Boa tarde”, Boa noite” não rasga a garganta de ninguém e é sinal de bons modos, que não se deve ser prerrogativa apenas dos superiores hierárquicos, mas de todos, independente da condição e posição social.

            Há quem seja educado apenas em determinadas circunstâncias e com aqueles em quem quer causar boa impressão. No mais é de uma impolidez vergonhosa! Garçons são as vítimas favoritas de quem mostra grosseria como cartão de visita. Cenas grotescas acabam com as potencialidades de um encontro agradável e fazem morrer os assuntos ali mesmo. Afinal, não dá para conversar com quem usa as regras da boa educação de modo seletivo, não como atitude incorporada ao trato com os outros.

            É bem verdade que, às vezes, temos razão para nos sentirmos insatisfeitos com o atendimento, mas isso não justifica qualquer indelicadeza. O pedido veio errado? O produto está com problema? Não gostaste de alguma coisa? Explica direitinho e pede uma solução. Não é preciso dar escândalo, xingar, aparecer, em suma, em cima de uma situação causada por alguém, o que pode não ter sido intencional, absolutamente. Por que a bobagem de tentar mostrar um poder que não existe? Não te iludas! Não te verão, por fazeres isso, como um “poderoso”, mas como um estúpido, e essa imagem cola mais do que chiclete mascado nos cabelos.

            Olhar as pessoas é descobrir – e respeitar – o mundo que há nelas. Não importa quem seja o teu interlocutor, olha nos olhos, fala com a percepção de que, diante de ti, está um ser humano. Lamentavelmente, as pessoas se falam como se estivessem se dirigindo a uma parede e a resposta é de igual padrão: olham sem ver. E não é somente na rua! Dentro da mesma casa, pais e filhos não dialogam, aliás, mal se encontram, pois quando um sai, o outro dorme, quando um está dormindo, o outro chega, e no meio da família tem a atenção e o tempo dedicados ao computador, à internet, à televisão e ao celular, sem contar estudo e trabalho.

            Homens e mulheres se olham, mas não se veem também, e a insensibilidade grassa nas relações. Muito pior do que reclamar que o marido não viu que a esposa cortou os cabelos, é não conhecer a fundo aquele com quem divide cama e mesa, e com quem pensava compartilhar dias, vida e futuro. Existem casais que sequer se falam, mas vivem sob o mesmo teto de ausência. Não se separam, mas não estão juntos. Coabitam a infelicidade conjugal até que a morte os separe ou que um se encoraje a tomar uma decisão a favor de ambos.

            Nas empresas, órgãos, entidades e instituições, os colegas se conhecem? Com as exceções que confirmam essa realidade, não. Passam o dia inteiro em uma sala comum, mas jamais se visitam. Tampouco sabem como os outros vivem, se são felizes e o que querem para o seu amanhã. Recomendam que seja assim para não haver mistura entre o que é estritamente profissional e o que se circunscreve ao âmbito pessoal, mas trabalhar em um ambiente que oscila entre a indiferença e a hostilidade é extremamente funesto, além de estressante. Vestindo a armadura dos insensíveis, sobrevive-se a isso, olhando tudo e todos sem os ver.

(*) Crônica publicada na edição de 6 e 7 de novembro de 2010 do jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS.

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