Vera Pinheiro
A Deusa está dentro de nós. Às vezes,
totalmente esquecida; de outras, apenas adormecida em nossa lembrança ancestral,
mas basta um querer profundo para que Ela se manifeste e um chamado do coração
para que nos atenda. E o chamado é nosso, pois que a Deusa está – como sempre
esteve – presente e disponível. Essa conexão não é difícil, porque, para a
Grande Mãe, não há impossibilidades além das que, por nosso livre arbítrio,
escolhemos para atravancar a nossa vida, do ponto de vista físico, mental,
emocional, espiritual ou energético.
A um chamado nosso, vindo das entranhas
do nosso ser mais intensamente revelado, a Deusa nos acode e nos acolhe, nos dá
colo na solidão e força nas batalhas, sabedoria nos desafios e equilíbrio nas
dificuldades, além de uma alegria que faz brilhar a vida dentro e fora de nós. A
Deusa é uma luz que se acende em nós e que se sustenta em qualquer escuridão
que tenhamos de enfrentar, seja uma dor, um desapontamento, uma frustração ou
um sofrimento.
A Deusa, que tem Mil Nomes, se chama
Gerda também. Reverenciamos Gerda, a Senhora da Terra Congelada que habita
dentro de nós, reconhecendo as nossas limitações humanas, já que os nossos dons
espirituais são infinitos, ainda que não utilizados em sua plenitude.
Um dos limites que costumamos nos impor
é o que impede a própria felicidade. Muitas pessoas, por suas completas e
respeitáveis razões, mantêm congeladas as suas emoções para que, julgam elas,
se mantenham a salvo do amor e da paixão, negando que esses sentimentos sejam
fontes da energia que movimenta a vida e lhe dá sabor. Lutam uma vida toda para
não se entregar aos prazeres e dissabores do amor e da paixão, que não se
dissociam, porque mutuamente se alimentam e se fortalecem, mantendo, cada um,
as suas indissociáveis características.
Pensam, essas pessoas, que o amor
enfraquece e que a paixão fragiliza, então fogem desses sentimentos como se
pudessem viver sem eles. E não, claro que não. Não podemos viver sem amor e sem
paixão, que vão muito além do senso comum que limita o amor e a paixão à troca
emocional entre duas pessoas.
O amor é tão gigantesco e grandioso que
não pode ser limitado ao que existe nos parcos limites de nossos traçados
humanos, ou seja, embora exista pessoa especial que mereça tamanho e dedicado
amor – e tomara que exista! -, o amor precisa se expandir para além dos
relacionamentos amorosos, a fim de atingir toda a grande irmandade universal.
Não há amor que seja plena e inteiramente feliz em se circunscrever somente ao
limitado círculo de nossas relações humanas. Há que se amar a Natureza em
volta, porque ela expressa a generosidade do amor. Há que se amar todos os
seres da criação, porque o mesmo amor a todos nos criou. Há que se amar os
nossos iguais, por mais diferentes que se nos pareçam, pois que eles vieram da
mesma expressão criativa que tudo gerou.
E enquanto choramos ausências, por
pessoas que não vieram ou por pessoas que nos deixaram, a vida nos pede mais e
mais amor por tudo e por todos que respiram a existência, apesar de nossas
tristezas ou do pouco mérito alheio. Não nos cabe julgar. Cabe-nos amar
indistintamente todos os seres, e então conheceremos a verdadeira unidade. E
com todos somos um. O que a um fere, em nós doi. O que a um contenta, a nós
traz felicidade. Somos indivisíveis com o Todo.
As nossas decepções têm a capacidade de
nos impedir de crer de novo, de acreditar na felicidade outra vez, sem reservas
nem resguardos. Então, não nos entregamos com toda a nossa identidade a um novo
amor, por pensarmos que ele carregará os infortúnios de relações passadas, que,
na realidade, entre lágrimas e mágoas, nos serviram de aprendizado e de instrumento
para a nossa evolução. Mas é preciso crer e se entregar, se a felicidade é o
que queremos para as nossas vidas. Um carro não anda com o freio de mão puxado,
e a gente não avança no amor quando se deixa tomar de desconfianças, ainda que
nos seja exigida alguma – e sempre bem vinda – cautela, o outro nome da deusa
Gerda. O problema é quando a necessária cautela se torna a dispensável
repressão dos sentimentos e a gente se torna – ou quer se tornar – blindada aos
nossos mais genuínos sentimentos.
Apesar de nossas justificáveis dúvidas,
a paixão nos é vitalmente necessária. Ela nos anima quando a vida se apresenta
desbotada e nos empolga quando tudo parece sem qualquer graça. É preciso
apaixonar-se pela própria existência e, claro, por quem se é. A paixão não é
apenas ilusão dos sentidos. É o que dá sentido às nossas ilusões. Evitar a
paixão é botar gelo em uma das mais autênticas emoções humanas. É preciso se
apaixonar pela vida, por novos projetos, por toda a humanidade.
Congelar os próprios sentimentos até
pode dar certo, mas é devastador do ponto de vista do aprendizado das relações
humanas. Não crescemos se não nos entregamos aos sentimentos, não aprendemos se
fugimos da essência de qualquer emoção. Tudo o que vivemos nos acresce e nos
faz crescer, se não ficamos no limite entre o que achamos que nos preserva e o
que deveria ser. Todos os dias a gente precisa avançar no aprendizado do amor e
da paixão, sinônimos da nossa essência humana.
Quando Gerda se deixou tocar pelo toque
luminoso de Frey, o alegre deus da primavera e da vegetação, essa deusa fez uma
concessão a novas possibilidades, apesar de todas as suas anteriores e firmes convicções,
e ninguém pode criticá-la por isso. A sua flexibilidade permitiu que conhecesse
o amor de Frey, que lhe dedicava grande devoção. Ela aceitou a proposta de
casamento dele, não sem antes estabelecer as suas regras, e esse limite a manteve
em saudável individualidade. Fez suas exigências, tomando-lhe bens preciosos
como a espada e o cavalo, por julgar-se merecedora desses dotes, e com isso nos
ensina a valorizar quem nós somos, com plena capacidade de exigir o que seja
melhor para nós, ainda que vislumbremos os pedidos alheios.
Deixemo-nos tocar pela amorosidade dos
outros sem medo nem qualquer reserva. Se não pudermos acreditar, que possamos
nos permitir a possibilidade de aprender com o que vier. Se não pudermos
confiar, que tenhamos a convicção de que tudo faz parte de um projeto divino,
que nos inclui (e que bom!). Que o amor possa fazer adormecer as nossas
excessivas precauções e nos fazer receptivas a pessoas e a novas chances de
felicidade. Que os nossos temores sejam menores do que a nossa vontade de ser
feliz. Que o gelo de nossas inseguranças sejam derretidos pelo amor e pela
paixão, e assim como Frey conquistou Gerda, elevando-a à condição de deusa, que
sejamos deusas em nossa máxima expressão para que um Frey nos encontre e, embevecido,
nos ofereça o melhor dos mundos, pois, afinal, merecemos! Que a deusa Gerda
desperte em nós e nos faça mais receptivas ao amor, apesar de todas as nossas
desconfianças e receios. E que os homens se justifiquem como deuses em nossas
vidas, fazendo por merecer essa prestigiosa condição!
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