Vera Pinheiro
A deusa lunar Erzulie contempla a alma feminina. Nem só feita de
virtudes, não apenas as suas sombras. Como cada uma de nós. O dual cabendo num
único ser. Os opostos e todo o contraditório do comportamento feminino. A
elegância, a vaidade, a beleza, a sexualidade, a feminilidade
extremada alternando-se com os excessos, o ciúme que brota do nascedouro do ego
ferido e as discórdias que daí se derivam. A Deusa Erzulie é em cada mulher, e
dessa constatação escapam as que não querem investigar as entranhas de suas
emoções e sentimentos. Comparar-se com Ela, identificar-se em sua dualidade, impõe
voltar os olhos para quem nós, real e secretamente, somos. Adoráveis, sábias,
amorosas, mas ao sopro dos ventos contrários fazendo o despertar de nossa face
mais obscura, rejeitada e temida.
Erzulie
(nome haitiano) ou Ezili (nome africano) é a deusa do
amor haitiana cujas raízes remontam à África Ocidental. É conhecida como
uma deusa lunar muito elegante, sensual, afetuosa, perfumada e ricamente
vestida, que vive com grande luxo e passa grande parte de seu tempo
embelezando-se. Quem jamais, em tempo algum, se enquadrou em pelo menos parte
de uma descrição como essa? Ela, a Deusa, gosta de flores, joias, belos
vestidos e delicados perfumes. Alguma semelhança conosco não é mera
coincidência. Tampouco, acaso. Não é inútil.
Em seu aspecto
luminoso, Erzulie é regente do amor, da alegria, da beleza, da magia, da cura e
da boa sorte. Quase tudo o que aspiramos ser! No Caribe, Erzulie era chamada de
“La Siréne”, sendo representada alimentando-se de bananas, como uma sereia ou
serpente aquática. Nesse aspecto, regia a água salgada e era amante do Deus Agone
T´Arroyo. Como regente da água doce, da beleza e do
amor, era chamada de Oxum na tradição ioruba e ainda de “A Senhora do
Vodu”, sendo considerada a esposa do deus Damballhah.
Ela
é um sinônimo de beleza, amor, doçura e sensualidade e é reconhecida por sua
generosidade. As artes, em particular a dança, são os seus domínios. Rios,
riachos, lagos e cachoeiras lhe pertencem e Ela pode curar problemas de útero
através de sua água fresca. A “raquete” que segura é de Osogbo, Nigéria, e
pertence a uma sacerdotisa de Oxum, sendo mediador entre o divino ou o mundo
natural e o mundo das pessoas, e a cruz no círculo indica o encontro dos dois
mundos.
Erzulie é frequentemente referida como uma mulher negra
muito bonita e de grande riqueza, vestindo quantidade excessiva de joias. Ela
usa três anéis de casamento, um para cada marido - Damballah,
Agwé e Ogoun. A ela são consagrados os quartos de dormir, razão pela qual a cama
aparece como um dos seus emblemas. Outro é o coração. Suas cores são rosa, azul, branco e
ouro, podendo estar em roupas do altar, itens,
velas, presentes, garrafas e até mesmo
alimentos. Suas oferendas favoritas incluem joias, perfumes, tortas
doces e licores. No compartimento a Ela dedicado nos templos de vodu,
nunca faltam sabonetes, toalhas, perfumes e outros artigos de toucador. Seus dias sagrados são 28 de fevereiro, 12 e 16 de julho de
todos os anos. É de costume no Haiti realizar uma procissão rumo à cachoeira
sagrada da deusa do amor Erzulie Freda. As pessoas invocam seus poderes mágicos
com cânticos e danças extáticas. Depois se banham nas águas detentoras de
poderes milagrosos de cura e regeneração e ofertam flores e presentes em
agradecimentos.
Amante da beleza e elegância, Erzulie simboliza a
feminilidade e a compaixão. No entanto, ela também tem um lado sombrio, que
seria consequente à característica de ser ciumenta, mimada, vaidosa, volúvel, caprichosa, extravagante e até mesmo tirânica. Tão humanamente
feminina em seu aspecto escuro quando, em vez de
propiciar o amor, Ela provoca ciúmes, egoísmo, discórdias e vinganças. Por pior
- e difícil - que seja absorver o conceito da sombra em uma divindade, ela
representa um aspecto que realmente precisa ser encarado, curado e superado no
universo feminino. Negado, jamais. Nem mesmo em uma Deusa.
Ela possui vários aspectos ou qualidades. Erzulie Freda Dahomey, o aspecto
Rada de Erzulie, é o espírito do amor, da beleza, das joias, dança, luxo e das
flores. A Grande Erzulie é tida como uma anciã austera que chora por não ter
sido amada quando jovem e bela e agora é velha e feia, e ninguém quer saber
dela. Erzulie Ge-Rouge (Erzulie de olhos vermelhos) nunca fala, mas derrama
lágrimas de fúria e dor através de seus olhos semicerrados. Ezili Couer Noir
(Erzulie de coração negro) é um espírito violento e temido por sua crueldade. Erzulie
Trois Femmes (Erzulie três mulheres) aparece sob a forma de três. Como Erzulie
Dantor tem o coração, que é seu vevé (brasão), transpassado por punhais, e
Ela é, então, o amor paixão, que sublima o amor selvagem.
Na iconografia
Cristã é associada com a Mater Dolorosa, a Virgem Maria, usando pérolas e ouro,
entre gemas com forma de coração e medalhões de todos os tipos. Uma espada
atravessa seu coração e Ela suporta a ferida calmamente, segurando o manto sob
a espada com as próprias mãos. Deusas e mulheres, cada uma com suas dores
tamanhas, a sensatez de mãos dadas com o paradoxo, a coerência passeando com o
disparate, enquanto cruzamos as fronteiras de nosso ser sagrado e humano, em
busca da totalidade.
Não é
confortável reconhecer e encarar os aspectos sombrios que nos habitam, mas
olhar para eles é um processo necessário, embora doloroso, à evolução e ao
crescimento. Com a aceitação sem julgamento de sua existência vem a consciência
e a cura para, enfim, fazer brilhar a intensa luz que coexiste com a sombra em
nosso ser. Na imensidão do universo feminino, Erzulie nos revela que, em todas
as formas de relacionamento, podemos vivificar as nossas melhores qualidades,
atributos e virtudes ou dar vazão ao inverso, ao reverso e ao avesso da
sacralidade que existe em nós. A inspiração é divinal, a escolha é nossa, o
resultado também. Que a Deusa anime toda a nossa feminilidade, enquanto acolhe
as dúvidas, incertezas e dificuldades do exercício de ser mulher.
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