Vera Pinheiro
As
Deusas Parteiras e da Fertilidade dão o sustento da vida. O aspecto de Parteira diz intimamente à condição
humana e, especialmente, à feminina e sagrada, uma vez que todos os seres
humanos nasceram de uma mulher. Porém, essa perspectiva tem alcance ainda maior:
refere-se, também, aos diversos e necessários partos ao longo da existência,
para fazer surgir uma mulher mais forte e feliz, desvinculada de dores e
opressões primitivas que se arrastaram por gerações, e liberta de experiências
amargas que deixaram marcas de sofrimento, os mais variados, às vezes apenas
por ser mulher.
O
nascimento é um ato assistido pela Deusa, sempre foi. Como Senhora que tem o
dom da vida, Ela ampara a mulher e a criança no momento em que a sacralidade
feminina se une ao eterno por laços que perpetuam a linhagem familiar e a ancestralidade.
A gravidez em si é a manifestação da Grande Mãe, e as Suas representações a honravam celebrando a fertilidade, e assim
também a dança da vida e da morte, os ciclos da lua, as energias e os seres da
natureza, como destaca a escritora e sacerdotisa da Deusa Mirella Faur.
A fertilidade feminina, cuja avaliação deve ser
realizada por profissional especializado em reprodução humana, assinala um
período de possibilidades de engravidar, enquanto o adiamento da gravidez é uma
opção baseada em vários fatores, tais como estabilidade profissional, a
espera por um relacionamento estável, o desejo de atingir segurança financeira,
ou a incerteza sobre o desejo da maternidade. Mas
se a fertilidade da mulher, no sentido da concepção de um novo ser, se vincula
a determinadas condições, a fertilidade no âmbito de seus sonhos, de suas metas
e de suas realizações como ser humano não se restringem à idade ou à fase
fértil de sua vida, pois, em todos os ciclos femininos é possível recriar a
vida e fazê-la feliz e produtiva. Esse é outro enfoque da fertilidade, por uma
existência sem restrições pelo fato tempo ou pela idade.
Em
seu livro “Anuário da Grande Mãe”, Mirella Faur enumera Al-Zat, Anahita, Anna
Perenna, Ártemis, Asae Yaa, Boan, Djanggawul, Eostre, Epona. Fortuna, Freya,
Frigg, Hertha, Madder Akka, Omamama, Ranu Bai e Ymojá como Deusas da
Fertilidade, e cita, na mesma obra, Ajysit, Ártemis, Carmenta, Dea Mater,
Egeria, Eileithya, Ix Chel, Kalika, Leto, Lucina, mater Matuta, Madder-Akka,
Mami, Mawu, Neith, Perséfone, Postvolrta, Sar Akka, Saule, Savitri, Sheelah Na
Gig, Srabhi, Uks-Akka, Umaj, Vesta, Ymojá e Zemya como Deusas do Nascimento e
Renascimento.
Dentre
as Deusas mencionadas nos dois aspectos – Parteira e Fertilidade – estão
Ártemis e Ymojá. Ártemis é a mais complexa das doze divindades olímpicas e
representa as variações da natureza feminina como deusa virgem lunar, ninfa
caçadora, deusa guerreira, padroeira das florestas e dos animais, além de protetora
e ajudante dos partos e das crianças, porque ela nasceu sem complicações e
ajudou o parto de seu irmão gêmeo Apollo.
A natureza de Ártemis é complexa e contraditória,
conforme Mirella: ela é virgem, mas cuida e auxilia parturientes e crianças; é
caçadora e ao mesmo tempo protetora dos animais, é guerreira e rainha das
Amazonas, mas também é A Mãe dos Mil Seios, senhora da fertilidade. Simboliza a
dualidade do bem e do mal, ora aparecendo como uma linda donzela, ora deusa
vingativa, agindo como parteira amorosa ou feroz guerreira, protetora das
crianças sem nunca ter sido mãe, cuidando da vida ou promovendo a morte.
Originariamente, Ártemis era a Mãe da
Floresta, invocada por caçadores e viajantes que eram por Ela protegidos, desde
que eles não matassem fêmeas prenhas e filhotes, não caçassem por esporte ou
distração, nem desperdiçassem recursos e riquezas naturais.
No mito grego Ártemis aparece como filha de Zeus e Leto
(que originariamente era uma deusa pré-grega chamada apenas “Nossa Senhora”),
que tinha sido amaldiçoada pela Hera para não poder parir em nenhum lugar onde
os raios solares incidissem. Leto foi ajudada pela sua irmã Asteria, que se
transformou em uma ilha mágica, Ortigia, que flutuava sob a superfície do
oceano e assim sendo, livre da maldição. Ártemis nasceu com facilidade, mas
como seu irmão gêmeo custava a nascer e Leto sofria dores terríveis, Ártemis
ajudou a trazer Apollo ao mundo. Foi assim que se originaram os nomes de Ártemis
como Eileithya e Partenos, a Parteira amorosa e o título de “Aquela que trazia
a luz”. A ilha mágica - renomeada Delos (“brilhante”) - foi consagrada a
Ártemis e Apollo, sendo que lá nenhum ser humano podia nascer ou morrer.
Quando Ártemis completou três anos, foi apresentada ao
seu pai e Zeus encantado com sua precocidade lhe ofereceu quaisquer presentes
que ela quisesse. Ártemis pediu para jamais precisar casar (“e assim
permaneceu, sendo imune aos encantamentos de Afrodite e Eros”), ter mais nomes
do que seu irmão, mas ter arco e flechas como ele, poder usar sempre uma túnica
curta para correr à vontade nos bosques, ter como companhia 60 ninfas do oceano
e 30 dos rios que cuidassem dos seus animais, reger a Lua e a luz (na sua
qualidade de Phoebe, “a luminosa”), ter o domínio das montanhas e florestas e o
direito de fazer sempre suas próprias escolhas.
Seus
inúmeros títulos se referiam às Suas funções e domínios múltiplos, como regente
das florestas, dos animais, da caça, dos lagos, pântanos, rios, mares, campos, das
clareiras, da madrugada, da Lua, da luz, dos partos, da cura e da proteção. Ela
regia as fases da vida, as transições e dimensões das experiências femininas,
(infância, adolescência, gravidez, amamentação, menopausa, solidão, morte),
protegendo-as das ações ou interferências masculinas.
De
acordo com Mirella, eram três as grandes áreas regidas por Ártemis: a
sobrevivência das espécies (fertilidade, reprodução e nascimentos), o controle
do tempo, das águas e das marés e o ciclo de vida, destruição e morte (como
caçadora ela mantinha o fluxo e o intercâmbio natural das energias), regendo
também a lua negra e a noite, junto com Hécate. As matas, os bosques e campos
pertenciam à Ártemis e às Suas ninfas que moravam nas árvores, plantas, nascentes
e rios, cuidando e protegendo tudo com amor e dedicação. A paixão e a
virgindade são aspectos entrelaçados de forma estranha e profunda, assim como
também é o habitat selvagem e longínquo, que resiste e reage a qualquer forma
de violação.
De
todas as deusas gregas, Ártemis é a mais próxima das mulheres, por isso é
considerada sua Protetora por excelência, como comprovam as dezenas de títulos
e atributos a Ela conferidos, distribuídos em várias áreas por eles regidos. “Para as mulheres
que seguem o Caminho da Deusa, Ártemis personifica o espírito feminino
independente, que lhes possibilita estabelecer e defender seus próprios
objetivos e escolhas, agindo com confiança e determinação, sem precisar da
aprovação masculina. Sentindo-se completas em si e por elas mesmas, o arquétipo
de Ártemis reencontrado e reavivado pelas mulheres modernas, lhes confere a
habilidade de se concentrar naquilo que é importante, sem se perturbar com a
competição, as exigências ou necessidades alheias. O enfoque nos objetivos e a perseverança
facilitam a superação dos desafios e obstáculos, direcionando a vontade para
alcançar o alvo estabelecido”, diz Mirella.
MÃE DE NOSSAS
ÁGUAS
Saudada
na forma tradicional com “Odo Iyá”, Ymojá ou Yemoyá, mais conhecida entre nós
como Yemanjá, é deusa ioruba do mar e da Lua, protetora das mulheres e crianças,
considerada a Mãe de todos os Orixás e uma das maiores deusas africanas. Em sua pátria, era a deusa ioruba regente do
Rio Ogum, filha do mar, para cujo seio ela fluía. Era também a Mama Watta, a
Mãe D’Água, que deu origem a todas as águas e gerou inúmeras divindades. Mesmo
dormindo, ela criava, incessantemente, novas fontes de água.
O
mar engloba as misteriosas origens da vida, que, após inúmeras transmutações e
percursos, para ele volta no final do seu ciclo, observa Mirella Faur. “Desde o
instante em que nascemos do líquido salgado do ventre materno, até quando os
nossos pulmões se preenchem com os fluidos corporais no momento da morte, somos
um receptáculo para o caminho da água, o nosso mais precioso e sagrado
presente. Desde a antiguidade o mar simbolizou vida, magia e mistério, sendo o
berço da própria vida, pois ele existiu desde o começo dos tempos, antes que a
terra fosse formada”.
Mirella
lembra que a Deusa se manifesta em todos os elementos: Ela é a Mãe Terra, o
Sopro da Inspiração, a Senhora das Chamas, mas o elemento em que a encontramos
mais facilmente é a água, pois assim está presente em todos nós. A vida começou
no mar e o nosso corpo guarda esta lembrança no líquido amniótico, nas
lágrimas, no sangue, nas células e nos fluidos corporais. Nossos ventres e
nossas emoções respondem ao chamado das marés e da Lua e retornaremos ao ventre
primordial seguindo o eterno fluir do tempo, do seu inicio até o fim. “A Grande
Deusa é a quintessência fluida formada das águas, as celestes e as subterrâneas
(onde pertencem os córregos, riachos, rios, cachoeiras, fontes, lagos, mares),
em cujo ventre a vida se formou como se fosse um peixe”.
Mirella
diz que, originariamente, Yemanjá era divindade das águas doces, regente do rio
Ogum, associada à fertilidade das mulheres, maternidade, criação do mundo e
continuidade da vida. Por ser regente do plantio e colheita (dos inhames) e da
pesca, seu nome ficou Yeyé Omo Ejá, a “Mãe dos filhos peixes”. Nas
representações míticas e nas várias imagens seus poderes - gerador e nutridor -
são revelados pelos seios fartos e as ancas largas. Nos mitos Ela aparece como
uma Grande Mãe, protetora das cabeças dos mortais, generosa nas suas dádivas e
representando os diversos papéis da mulher: mãe, filha, esposa, irmã.
Na
transposição para o Brasil foi transferido para Yemanjá a regência do mar, que
na África pertencia a seu pai ou mãe, Olokun, pois segundo conta uma lenda “as
lágrimas derramadas pelos escravos na travessia do oceano salgaram as águas
doces de Iemanjá”. Mas mesmo considerada orixá do mar, Yemanjá continua sendo
saudada no Candomblé como Odo Iyá, Mãe do rio, da qual sua filha Oxum herdou o
domínio das águas doces.
Concebida
popularmente como a Mãe propiciadora de saúde, prosperidade e boa sorte, além
de garantir sanidade, equilíbrio e clareza mental, Yemanjá perdeu aos poucos os
seus atributos originais de divindade guerreira e mulher sensual dos mitos
africanos e teve ampliado o seu papel de deusa mãe, diz Mirella. À medida do
fortalecimento do seu papel materno, Yemanjá foi aproximada da figura de Nossa
Senhora com quem Ela é sincretizada em Cuba e no Brasil, e suas festas
comemoradas de acordo com o calendário católico (como Nossa Senhora das Candeias
na Bahia, do Carmo no Recife, dos Navegantes no Rio Grande do Sul, da Conceição
em São Paulo).
Aos
poucos Yemanjá foi assumindo novos aspectos iconográficos trocando seus traços
africanos por características européias e sendo retratada como uma mulher
branca, com longos cabelos negros e lisos, de vestido azul com cauda,
caminhando sobre as ondas do mar, espalhando rosas brancas e usando uma tiara
em forma de estrela. Na Umbanda foi atribuída à Yemanjá a chefia de falanges de
“caboclos e caboclas do mar” e associada a diferentes Mães d’Água indígenas foi
chamada de Iara, a Mãe d’Água ou Senhora Janaina.
A
crescente participação da população nas Suas festas nas praias brasileiras -
principalmente nos dias 31 de janeiro e 2 de fevereiro - tornou Yemanjá o orixá
mais popular e reverenciado no Brasil, não somente pelos adeptos de Candomblé e
Umbanda, mas pela sociedade como um todo.
Transcendendo
as tradições afro-caribenhas que deram origem aos cultos modernos, Yemanjá é
cultuada atualmente pelos círculos sagrados femininos, adeptos dos grupos da
tradição Wicca e neo-pagãos, nos Estados Unidos e no Brasil, como uma Deusa
Mãe. Apesar das suas modificações ao longo do tempo e espaço, os atributos de
amor e nutrição que Yemanjá traz para seus adeptos são prova do seu poder
milenar como protetora das crianças, mulheres e famílias.
“Enquanto
Olokum detém os poderes de destruição subindo enfurecida das profundezas do
mar, Yemanjá rege a superfície e a calmaria. A suavidade da filha pode acalmar
a fúria da mãe, pois ambas representam os ciclos de mudança: dar a vida,
proteger, abrigar, nutrir, transformar ou dar-lhe o fim. Com a ajuda de Yemanjá
podemos superar as marés e mudanças na nossa vida e buscar a tranqüilidade
mesmo no meio da tempestade”, assegura Mirella. Quem quiser parir, inclusive a
si mesma (tantas vezes quantas forem necessárias para o próprio bem estar) e quem
quiser animar a sua fertilidade (inclusa a criativa) deve lembrar-se disso. A
Deusa, em seus aspectos de parteira e de fertilidade, está sempre pronta a nos
guarnecer, amparar e proteger para quem tenhamos uma vida renascida e plena em
qualquer ciclo, para que possamos dar à luz um filho ou um projeto.
Abençoadas sejamos todas nós.
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