Vera Pinheiro
O dia
4 de abril marca o começo da Megalésia, o antigo festival romano de Cibele, a
Magna Mater, Grande Mãe e Mãe Terra, deusa da vegetação, da fertilidade, da
vida, da morte, da sabedoria e dos mistérios sagrados. Seu culto originou-se na
Frígia, região centro-oeste na antiga Ásia Menor (Anatólia), hoje a
moderna Turquia,
e espalhou-se por diversos territórios gregos, atravessando o Mediterrâneo até
chegar à Roma.
Cibele era representada como uma mulher madura, de
seios volumosos, coroada de flores e espigas de cereais, vestida com uma túnica
multicolorida e carregando um molho de chaves na mão. Às vezes aparecia cercada
de leões ou segurando várias serpentes. Frequentemente,
com uma coroa de muralhas, que simboliza o seu poder militar como protetora e,
ao mesmo tempo, arrasadora de cidades, com leões por perto ou num carro puxado por esses animais e uma cornucópia, o corno (chifre) da abundância, referente à
fertilidade e riqueza.
Cibele personifica a terra fértil. É deusa das
cavernas e montanhas, muralhas e fortalezas, da natureza
e dos animais selvagens, principalmente dos leões e das abelhas. Nos tempos dos
gregos e romanos, Cibele era chamada de A Mãe dos Deuses. O dramaturgo e
escritor Sófocles a chamava de “A Mãe de Tudo”. O templo de Cibele, em Roma,
foi transformado pela Igreja Católica na atual Basílica de São Pedro, no século
IV, quando uma seita de cristãos montanheses, que ainda veneravam Cibele e
admitiam mulheres como sacerdotes, foi declarada herética, sendo abolida e seus
seguidores queimados vivos.
Segundo a lenda, que Mirella Faur
traz no “Anuário da Grande Mãe”, Cibele apaixonou-se por um jovem chamado Attis, que a traiu. Ao saber da traição, ela o
castigou, enlouquecendo-o. Em uma de suas crises de loucura, Attis castrou-se e
sangrou até morrer. Cibele, condoída com sua morte, transformou-o em um
pinheiro e de seu sangue nasceram violetas. Então, todos os anos, ao chegar a
primavera, Attis renascia e Cibele, feliz com seu retorno, fertilizava a Terra,
enchendo-a de folhas e flores, tornando-se uma
divindade do ciclo de vida-morte-renascimento ligada à ressureição do amante Áttis, que também era um deus frígio
de vegetação, e em sua automutilação, morte e ressurreição, representa os
frutos da terra, que morrem no inverno e renascem na primavera. Cibele é, ainda,
a deusa das muralhas e fortalezas, da natureza e dos animais selvagens.
O
festival de celebração da deusa Cibele, realizado em Anatólia, festejando o
renascimento de seu amado Attis do mundo dos mortos, era seguido de nove dias
de jejum, abstinências e orações, visando a renovação das pessoas. O terceiro
dia da festa era chamado "dies sanguinis". Nele a expressão emocional
por Attis alcançava o máximo. Cantos e lamúrias misturavam-se, e o abandono
emocional levava a um auge orgástico. Então, num frenesi religioso, os jovens
começavam a se ferir com facas; alguns até executavam o sacrifício último,
castrando-se frente à imagem da Deusa e jogando as partes ensanguentadas sobre
sua estátua. Outros corriam sangrando pelas ruas e atiravam os órgãos em alguma
casa por onde passassem. Essa casa era, então, obrigada a suprir o jovem com
roupas de mulher, pois agora havia se tornado um sacerdote eunuco. Depois da
castração usavam cabelos longos e vestiam-se com roupas femininas.
Neste rito sangrento, o lado escuro ou inferior da
Grande Deusa é claramente visto. Ela é verdadeiramente a Destruidora. Mas,
muito estranhamente, seus poderes destrutivos parecem ser dirigidos quase que
tão somente para os homens. Eles, quando escolhidos, precisavam sacrificar
completamente sua virilidade e, de uma vez por todas, num êxtase louco, onde a
dor e a emoção misturavam-se inextricavelmente. Mas, como diziam os primitivos,
"a Lua é destrutiva para os homens, mas é de natureza diferente para as
mulheres, apresentando-se como sua matrona e protetora”. Talvez isso se
explique por ter sido Cibele traída por Attis.
Segundo
os gregos, esta deusa seria uma encarnação de Reia, adorada no Berecinto, um dos picos do Monte Ida, na Frígia, daí ser acrescido
“berecintiana” ao seu nome, às vezes. O culto incluía manifestações orgíacas, uma forma de adoração
extática, elevada em êxtase, como era próprio dos deuses relacionados com a
fertilidade, celebrados pelos kouretes.
Perpetuando
uma antiga linhagem de sacerdotes que cultuavam a Grande Mãe e as divindades
matrilineares antes do surgimento das sociedades patriarcais, os kouretes eram
sacerdotes dedicados ao culto da Grande Mãe Cibele, servindo como iniciadores
nos mistérios da vida e das artes mágicas. Como mestres e protetores das
jovens, eles criaram a Ordem Sagrada dos Sacerdotes da Grande Mãe, e tinham a
atribuição de proteger as jovens, atuar como curadores, artesãos, construtores,
armeiros, magos, videntes e participar de ritos sexuais com as sacerdotisas.
Não se trata do conceito moldado nos
tempos atuais. Nas antigas crenças pagãs, os pólos femininos da criação eram
reverenciados como sagrados e a mulher era vista como o principal canal gerador
de vida. A Deusa era a divindade principal, responsável pela criação de todas
as formas viventes. Dessa forma, os ritos que envolviam Magia Sexual,
utilizavam-se do sangue menstrual como elemento principal do Altar Cerimonial.
Do mesmo modo, os fluidos produzidos no corpo humano de forma natural ou
através da estimulação sexual, também eram utilizados nas cerimônias herdadas
dos povos antigos que envolvem a Magia Sexual, e empregados para um determinado
objetivo. “Por sua vez, o rito funciona como um conjunto de regras
estabelecidas pelo culto, sendo esse último a expressão coletiva de adoração e
veneração de uma divindade”, conforme Patrícia Regina Corrêa Dias, citando LIMAMESQUITELA,
1991, p. 141.
Destaca-se, na análise do mito de
Cibele, que a reação dela tenha sido o castigo da loucura a seu amado que a
traiu. Com seus poderes de deusa, poderia ter sido Ela quem sacrificasse a
virilidade do amante, mas não o fez. Attis, por si mesmo, impôs-se o castigo
que julgou merecer, ainda que sob a influência da loucura, e isso representa um
arrependimento, ainda que tardio, de seu procedimento.
Essa, a juízo comum, seria a melhor
vingança para uma mulher traída por seu grande amor, que não fez por merecer a
dedicação da amada. Nada mais compensador do que ver a pessoa que nos traiu
exaurida em suas artimanhas, cobrada à exaustão por elas, resultado e
consequência de suas atitudes, comprovando a máxima divinal de que “tudo que se
faz volta triplicado”, seja bom ou nem tanto. Sem esquecer de que vale o mesmo
para nós, claro.
Sem julgamentos provindos de nossa
condição humana, Attis procurou se recobrar de seus malfeitos por meio de uma
ação extrema. Isso, no entanto, não o inocenta, mas lhe dá o benefício de
compreender que um gesto tem mais significado do que uma palavra e que, por
pior que seja a situação, sempre cabe um perdão dentro ela. Ainda que não
sejamos deusas, tampouco eles, deuses. O mistério sempre perpassa as
idiossincrasias de cada um, e sabe-se lá o que cada um é, com suas expectativas
e seus aprendizados, com suas dores e sua sabedoria, com seus mistérios e seus
segredos!
Ninguém pode dizer o que faria se não
tiver experimentado as nuances, todas, da circunstância. Estamos em um mundo em
que teorizar perde sentido, porque a experiência é que dá o grau de nossa evolução
e do alcance de nosso aprendizado. Temos de viver para saber, e isso é tudo.
Portanto, ninguém pode avaliar
Cibele, a deusa, a respeito de sua reação diante da traição. Cada um sabe de si
e a Grande Mãe sabe de todos, conhecendo até mesmo aqueles segredos que somente
confessamos ao travesseiro em altas e silentes madrugadas.
Cibele nos traz uma preciosíssima
inspiração a respeito de nossas atitudes diante de uma traição, iminente ou
concretizada. O mito não nos diz que Cibele ficou arrasada com a traição, que
se sentiu a última das deusas e que se achou um mínimo. Ela fez o que podia e quis fazer, e mais não
demandou no caso. Não se tem notícia de que tenha varado muitas noites insone,
sem pregar olho, pensando em Attis e se achando péssima, coisas que fazemos
quando atravessamos uma situação parecida.
De alguma forma, nós somos deusas.
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