sábado, 23 de outubro de 2010

“Ficar” ou namorar (*)

Vera Pinheiro

            “Ficar” não é do tempo em que eu era mocinha. Naqueles idos, lá pelos anos... Ah, deixa pra lá... A gente namorava às quartas-feiras, aos sábados e domingos até as 10 da noite, nem um minuto mais. Quem tinha irmãos mais novos podia contar como certa a presença de alguém para “segurar vela”, ou seja, vigiar o namoro. Alguns enamorados se davam a subornar os pequenos fiscais da moralidade de outrora com dropes, chicletes e bombons para que abandonassem a missão de impedir que o casal se entregasse a arroubos de paixão.

Essa guarda atenta levava muitas mulheres virgens ao casamento, a se deitarem com homens com quem jamais tinham tido contato físico, o que não deixava de ser um grande risco de insatisfação garantida. Mas, apesar de todo o zelo, havia quem se casasse grávida sob a pecha de que “o namorado fez mal para ela”, assunto que se comentava a boca pequeníssima como se a honra da moça dependesse exclusivamente disso, e dependia, na época. A curiosidade infantil, lembro-me bem, não se satisfazia jamais, mas não adiantava perguntar, pois explicações não eram dadas, e a gente não entendia por que a moça parecia tão feliz ao se casar justamente com um homem  que lhe havia feito mal. Crescemos, então, supondo que sexo não era algo saudável do ponto de vista da experiência humana e dos preceitos religiosos. Era um mal, enfim.

            Andar de mãos dadas somente era permitido depois de concedida a licença dos pais para o pretendente “freqüentar a casa” e namorar no sofá. Quem, como eu, era a mais jovem dos irmãos, tinha a própria mãe a fazer marcação cerrada, e a minha não dava trégua, o que me desestimulava a namorar, confesso. É bem possível que se ela não tivesse ficado em pé atrás da cortina transparente da sala quando, ajoelhado, um ex-namorado me pediu para voltar, eu teria dito “sim”, mas temia que o juízo materno me considerasse fraca diante de um homem, coisa que nunca fui. Não sei se gosto disso ou não, mas entendo que foi uma necessidade e não imagino como tudo teria sido se eu não fosse como me tornei. De todo modo, é importante ser forte na solidão ou estando acompanhada.

            Ninguém ficava no portão depois que o pai ou a mãe davam o toque de recolher. Moça “de família” não ficava na janela (não havia internet, claro) e não falava com estranhos. Dormir na casa das amigas nem pensar! E ter amigos, homens, não era de bom tom. Uma pena, porque perdíamos a oportunidade de aprender sobre o universo masculino, e para isso muito nos servem os amigos quando não se tornam, eles mesmos, bons “ficantes” também. Nada sério, como dita a regra! Afinal, “ficar” é sinônimo de não ter qualquer compromisso.

As pessoas “ficam” por um dia, algumas horas, dizem tiau e voltam se o acaso ou a vontade sugerirem um reencontro. Nenhum dos dois está realmente interessado no outro, mas é importante que se sintam mutuamente atraídos para que essa relação superficial aconteça. E é de bom alvitre que tenham, ambos, consciência absoluta de que “ficar” não é namoro. É estar junto por alguns momentos e não pensar de novo na pessoa, não fazer planos, não programar o próximo feriado junto nem combinar o fim de semana lado a lado. É saber que não deve esperar um telefonema ou um torpedo pelo celular no dia seguinte. Flores, então, é coisa de um passado longínquo, que já se perdeu de vista.

“Ficar” é um encontro de ocasião que impõe controle extremo sobre os próprios sentimentos e domínio completo sobre as emoções para que sejam resistentes à ausência. Um se apaixonar e o outro não é como andar em direções opostas, e se um deles insistir em namorar, o que está a fim de “ficar”, apenas, vai fugir, é certo. Quem se submete a essa modalidade de relacionamento tem de conhecer como ela funciona para não rasgar o coração em tiras, e ninguém quer sofrer por amor que não é correspondido. Evitar amar, portanto, é uma prevenção usual dos adeptos. Quando não amar é possível, bem entendido, e às vezes o amor é mesmo inevitável, mesmo que se queira sufocá-lo.

“Ficar” pode ser um começo de namoro quando a pessoa bota os olhos dentro dos olhos de alguém e sente que ela veio para criar laços e ficar, literalmente, enquanto “ficar” é  o fortuito que se repete se houver chance. Namorar é o que faz uma pessoa quando quer a outra e ousa se tornar indisponível para as demais pela tentativa de ser feliz para sempre com aquela, ainda que “para sempre” não seja eterno e termine. Em suma, “ficar” é bom, namorar é uma delícia e amar é ótimo, apesar de tudo o que dizem em sentido contrário!

            (*) Crônica publicada na edição de 23 e 24 de outubro de 2010 do jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS.

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