segunda-feira, 4 de abril de 2011

Quem era ele? (*)

Vera Pinheiro
Raios cruzavam o céu e a chuva caía forte. Trovões entrecortavam o silêncio, abafando a música de um CD barato comprado em banca, embutido em revista que prometia métodos práticos para acalmar as emoções. A escuridão só era quebrada pelos faróis dos carros que vinham em sentido oposto, e eu mal conseguia ver a sinalização da pista molhada, mas seguia adiante, embora a velocidade abaixo do permitido. Meu coração trepidava pelo medo que sempre senti das tempestades, inclusive da vida, que eu preferia tranquila, sem sobressaltos, embora em outros tempos tivesse gostado de coração à boca, por paixões sem cura, na expectativa de que tudo desse certo, mas nem sempre dava. A quilometragem de volta para casa me parecia mais longa, mas o caminho era o mesmo. A rota era conhecida e surpreendente ao mesmo tempo. Tudo não era de todo igual ao que eu vira antes, porque se movimentavam em mim questionamentos sem respostas, que perpassavam as inquietudes de querer compreender a máxima extensão do ser humano, ainda tão distante do meu entendimento.

Será que ele sentia algum medo, ainda que não revelasse? Teria dores além das físicas? Quem era aquele homem que despertava um sentimento nacional de solidariedade; que se configurou como alguém capaz de botar a pátria de joelhos, em orações por ele; que mobilizou o país e inteiramente o comove em sua morte; que encantou pessoas de todos os credos, partidos e idades; que se tornou símbolo de fé, otimismo, superação e confiança, a despeito de todas as probabilidades e diagnósticos, que ao mais comum dos mortais faria despencar em lágrimas de sofrimento e tornaria refém da desesperança? Das poucas certezas, a de que ele era avesso ao perfil de político como o senso comum concebe depois de tantas decepções, falcatruas e corrupção à vista, delineando as feições da raça.

O mineiro José Alencar Gomes da Silva, aos olhos da nação, perdeu a sua naturalidade de Muriaé para ser apenas – ou tudo isso – um brasileiro, e dos melhores, amado de ponta a ponta de um Brasil completamente sem fronteiras nem limites em um sentimento nunca dantes tão unificado por alguém que ocupava o cargo de vice-presidente da República, até então visto como coadjuvante do cenário máximo que alguém pode alcançar no Poder Executivo. Quem era ele, afinal?
Seis anos de convivência não foram bastante para traçar um retrato dele e, sobretudo, não justificavam de pleno o carinho que brotou espontâneo por um superior hierárquico, a quem vi pela primeira vez numa apresentação formal, de quem chega sem saber exatamente o que fará, mas disposta, como eu estava, a enfrentar o desafio de uma estrutura desconhecida, e a dela dar conta, como dizem os mineiros.

No primeiro contato me deixei cativar pelo olhar profundo de José Alencar e pelo seu riso fácil e acolhedor, mas ele não deixou dúvida de que, antes de me receber em seu gabinete amplo, já havia tomado todas as informações que lhe dessem a mínima garantia de que pudesse confiar no meu trabalho, e isso não era tudo. Só mais tarde pude vislumbrar, ainda que parcialmente, e por todos não poderia falar, o que seria assessorar a Vice-Presidência da República, que exigia a celeridade de um ambiente de Redação de jornal em fechamento de edição de sexta-feira, a urgência da informação em tempo real e o cumprimento de pautas com mais habilidade e presteza do que uma reportagem com manchete de capa, porque tudo o que eu escrevesse não seria a minha palavra, mas a própria voz do vice-presidente da República, o que requeria conhecer seu pensamento sobre todos os assuntos e, mais que isso, seu jeito de se expressar, sua linguagem, seu humor precioso, sua vasta cultura e sua sabedoria galgada em experiência de toda uma vida.

O primeiro passo seria esquecer, quase por completo, do cargo de José Alencar Gomes da Silva. Simplesmente esquecer quem ele era. Caso me lembrasse com mais frequência do que o necessário e recomendável, poderia perder a intimidade com as palavras e me deixar embotar pelo esplendor do cargo dele, que ofuscava tudo em torno e fazia pessoas se quedarem em paparicos e vaidades. Precisei não lembrar para quem eu trabalhava para poder cumprir todas as demandas vindas dele e continuar sendo a minha essência profissional e, sobretudo, humana. Ao vê-lo morto chorei a saudade da pessoa admirável que a vida me permitiu conhecer e senti uma saudade imensa, desde então.

 (*) Crônica publicada no jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS, edição de 2 e 3 de abril de 2011.

Um comentário:

  1. Florzinha,
    Pude sentir a tua emoção do início ao fim desta crônica. A saudade fica e faz com que boas lembranças surjam como relâmpagos, permitindo-nos vivenciá-las por muito tempo.
    Nota-se que a tua convivência com ele te proporcionou muitos ensinamentos.
    Beijos saudosos.
    Lindinha.

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