sábado, 9 de abril de 2011

A cama

Vera Pinheiro           
            Nela depositei o corpo cansado e muitos desejos que tinha. Chorei por vezes em silêncio e, de outras, sufoquei gritos de prazer para não escandalizar os vizinhos. Aninhei, em noites insones, toda a saudade guardada, angústias sem solução e as melhores lembranças do amor. Partilhei divertimento e a alegria de estar junto na eternidade de um momento que se torna inesquecível por ser bom. Brinquei de ser feliz, ri muito e me distraí com felinos que, ao contrário dos homens, não se assustam com minhas garras; mostram as deles, mas não me ferem.

            Carreguei a minha cama de ilusões. Esperei demais por quem não veio e por alguém que não voltou. Tentei, a custa de muito esforço, tirar o cheiro amado dos lençóis e, que bom, eu consegui! Da cabeça, levou tempo. Do coração, um pouco mais. Até que enfim, e já não era sem tempo, desapeguei do significado da cama que acompanhou a transição da fase da mulher madura para a minha “melhor idade”.

            Tudo novo na existência! Renovei o que podia e com o impossível de mudar me conformei. Do que não deu felicidade, me desfiz. Do que atravancava a memória e as emoções, me libertei. Rasguei fotos, doei presentes de ex, queimei reminiscências imprestáveis para a história de uma vida. Tirei fora muitas provas de que amei quem não merecia para não dar exemplo ruim às netas que, um dia, terei. Que as mulheres da família aprendam comigo a amar, sim, claro, mas, também, a se recobrarem das perdas, desilusões, amargores e traições, tal como fiz. E que os homens da sucessão sirvam de modelo de como tratar as mulheres, contribuindo para que sejam – elas e eles – felizes.

            O desapego é a palavra da hora! Do tanto que acumulei, grande parte perdeu serventia e sentido, não tem valia ao futuro. Alguns sentimentos igualmente descartáveis ainda se mantinham em mim. Uma e outra frustração, uma briga que não quis ter, um desafeto que preservei, certa tristeza que alimentei, uma dor que não curei. Deixei que todo esse entulho se fosse para liberar espaço e me fazer livre. Fiquei com a alma leve para voar outros sonhos na garupa das vontades.

            Fiz um balanço geral do que me era valioso e do que devia abandonar, do que podia jogar no lixo ou conservar, do que era agradável me lembrar e do que seria proveitoso esquecer. Mas e a cama?! Ah, aquela cama tão antiga e ainda bonita, como gente que envelhece com saúde e adquire nova beleza.

            Ao longo de duas décadas e uns anos, troquei o colchão e o par, e ambos foram duradouros, mudei os tons e cores das cobertas conforme o estado de ânimo e, na maior parte do tempo, dormi sozinha, entre lamentos de solidão e alívio por não ter com quem me deitar. Nisso não há o que controverter, pois, humana, vivi na gangorra emocional, enquanto estive apaixonada. Hoje são outros tempos e eu, uma mulher renovada! Posso até dormir sozinha, doravante, que ninguém ouvirá sequer um suspiro de queixume!

            Não foi fácil a doação e, diria mesmo, de todas foi a mais difícil e demorada! Aquela cama lembrançosa começou a ir-se embora quando me deu a perceber que eu dormia em um só lado, reservando a outra metade para o vazio e, quiçá, a inútil espera de irretocável companhia, e menos que isso eu não quero! Sequer desmanchava o edredom, como se uma presença adormecesse sem se mexer ao meu lado, por dias, meses e anos a fio!

            Em busca de encorajamento, consultei várias amigas solteiras, descasadas e viúvas para saber como elas dormem sem um parceiro diário em seus pelegos. A maioria adora um aconchego, mas nem sempre o tem. Outras preferem a rotatividade amorosa que oscila entre a liberdade e a independência, com a vantagem de não prestar serviços de mesa e banho, que são trabalhosos e sem alternativas que funcionem bem dentro de casa o tempo todo.

            Quanto à cama, há divergências. Algumas amigas minhas continuam em cama de casal onde se espicham de corpo inteiro, podendo adotar posição atravessada sem que ninguém reclame e dividindo-a com quem bem lhe aprouver. Outras, porém, tão logo desfeito o vínculo com o par, trocaram a cama larga por uma de solteiro. Solteiríssimas, essas mulheres passeiam na casa deles e dormem lá quando os desejam. Não lavam louça de manhã e não arrumam a casa onde são hóspedes. Pegam os seus pertences e dão tiau com um beijinho de “a gente se vê”. Eles adoram e elas acham cômodo. Quanto a mim, preciso mesmo só de um lado da cama. Por que ter dois se não uso?!

            (*) Crônica publicada no jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS, edição de 9 e 10 de abril de 2011.

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