domingo, 16 de janeiro de 2011

Dona de casa (*)

Vera Pinheiro
            Quando o dia amanheceu, senti uma fisgada no músculo do braço direito ao me virar na cama, e ao me mexer para levantar, uma dor lombar me arrancou um incontido “ai”. A batata da perna apresentava suas reclamações e os ombros doíam também. “Estou na idade do condor...”, pensei, e sorri, saudando a vida que mostrava uma nova face para mim, a de dona de casa.

            O começo em qualquer atividade não é fácil, vejamos o primeiro emprego em uma empresa ou instituição que não conhecemos e o princípio de um relacionamento amoroso, que são bastante exigentes. Para que tudo dê certo, precisamos de atenção, paciência, boa vontade, determinação, confiança e de uma expectativa positiva sobre o que estamos fazendo. Não é diferente de aprender a ser dona de casa, a que, por ora, me dedico quase com exclusividade, enquanto descanso. Bem, descansar não é exatamente o verbo mais patente e categórico para definir a primeira quinzena do novo ano. Tenho trabalhado demais! Fisicamente demais para quem, na maior parte do tempo, nas últimas quatro décadas, se manteve sentada. O corpo se ressente pelas muitas horas em pé, ao que não estava acostumado. Esse foi um desafio a ser vencido: as fronteiras físicas de quem nunca teve outro trabalho além do intelectual.

            E a falta de prática, essencial para o sucesso de qualquer empreendimento, mesmo os domésticos. Não bastam o conhecimento e a disposição, é preciso dominar o saber que provém da experiência. Mamita dizia que “para mandar é preciso saber fazer”, mas confesso que, no caso da administração doméstica – excluída a educação dos filhos, tarefa intransferível, – fui proficiente na delegação dos serviços de casa. E acalentei certa miopia para efetuar cobranças de quem me substituía nos difíceis labores do lar doce lar. Quem precisa se submete ao impensável, por isso cultivei a minha máxima independência em todos os sentidos!

            Já me disseram incontáveis vezes o que para mim é óbvio: tenho um nível de exigência sobejamente alto a respeito de tudo! Devo admitir, então, sem modéstia, que se não tivesse me dedicado à vida profissional, teria sido uma excelente dona de casa! Mas quem veria isso? Quem propala aos quatro ventos as habilidades da mulher que passa a vida em casa, cuidando do que vai botar nas panelas, da limpeza do chão, da organização do espaço de convivência comum a outras pessoas? Vão erigir um busto em praça pública para quem faz um trabalho que não é remunerado e, mesmo se fosse, não pagaria à altura do merecimento de sua executora, pois jamais acaba e se renova a um piscar de olhos?

            Ao começar a ser dona de casa – de verdade! – o meu preito de solidariedade a todas as mulheres que não saíram de seus lares em busca de realização profissional em área não circunscrita à casa. Só não sei como vou reagir se me perguntarem: “A senhora trabalha?”. Tenho fundamentada suspeita de que subirei no salto e discursarei por horas sobre tema que me faz pensar, e muito, sobre o universo feminino. Sim, pois enquanto cozinho, lavo, passo, dobro, guardo, esfrego, varro, lustro e espanejo, a imaginação vai longe!

            Olho para as minhas mãos, que não têm medo de qualquer lida brava, e me compadeço! Não aprendi o uso de luvas, exceto as de pelica, para esbofetear com delicadeza! Os pés estão com terra entranhada entre as unhas, de tanto trabalhar descalça. Esse estado fará a manicure ter uma síncope e me recomendar, como já o fez, usar calçados, mas que graça isso tem diante da alegria do contato com a terra?

            Algumas coisas, definitivamente, não se explicam. Por exemplo, o prazer de fazer o que se gosta, estar com quem se ama e se entregar de corpo e alma ao que a vida oferece a cada dia. Deve ser por essa razão que me alegrei imensamente por ter areado um alumínio até me espelhar nele, ainda que tenha rachado a ponta do dedo e ressecado a pele. Tudo o que precisa ser feito, deve ser feito com amor! É o que dá sentido ao que se faz e traz um riso de prazer ao final de tudo.

            Porém, como o caminho do meio é o mais sábio, agora busco o equilíbrio para que a atividade doméstica não acabe comigo! Minha mãe dizia: “A gente vai e o serviço fica!”. Vou fazer mãos, pés e cabelos e passar o fim de semana num SPA, louvando as mulheres donas de casa, que ainda atendem filhos e marido. Não sei onde elas encontram fôlego para sexo. Eu dormiria de costas, cansada desse jeito!
           
(*) Crônica publicada na edição de 15 e 16 de janeiro de 2011 do jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS.

Um comentário:

  1. A respeito do teu artigo "Dona de Casa", estou enviando outro que escrevi e que tem relação com o assunto. Ele foi postado em meu blog e chegou a ser publicado de forma resumida no jornal Zero Hora. Se quiseres ler, é só clicar no seguinte endereço:
    http://jobhim.blogspot.com/2010/05/rituais-eternos.html

    Jorge André Irion Jobim

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