sábado, 22 de janeiro de 2011

Encantar-se (*)

Vera Pinheiro
            Um dos grandes mistérios da alegria de viver pode ser desvendado ao se olhar as pequenas e corriqueiras circunstâncias do cotidiano: é encantar-se! Enquanto nos mantemos encantados por algo ou alguém, nosso espírito se mantém enlevado e o arrebatamento permanece. Quando o encanto se desfaz, o entusiasmo some e o que nos cativava perde a graça. E sem encantamento não há interesse que resista ao desânimo.

            A intimidade é inimiga do sucesso de muitos romances, mas pode ser sua melhor aliada. O ingresso no mundo mais reservado e secreto de uma pessoa pode fascinar ou decepcionar, depende das expectativas e dos conceitos antecipadamente elaborados, que atrapalham o deleite das descobertas e tiram o prazer das boas surpresas. Se nos encantamos, continuamos atraídos pelo outro, e os defeitos não nos assustam, enquanto as qualidades, embora escassas, se engrandecem, justificando aquela presença em nossa vida. Porém, sucessivas decepções desencantam e minam o relacionamento, que acaba.

            Encantar-se e, na sequência, gostar e amar profundamente vai do conhecimento breve, que incita a aproximação, à capacidade de extasiar-se com o outro todos os dias, ainda que, de vez em quando, experimentemos a desilusão a respeito de determinado aspecto de seu comportamento. Se não for grave o bastante para causar desencanto e levar ao afastamento, a vida a dois se refaz e o encanto de outrora também, mesmo que reste meio lascado. Construir uma história de amor exige equilibrar, acomodar, resolver, e pacificar emoções conflitantes e opiniões divergentes, retomando o velho e bom encanto da relação.

            O que faz um casal permanecer junto por décadas senão a disposição de amar, e amar sempre, mesmo que não seja do mesmo modo que no primeiro encontro? Isso é encantar-se com a pessoa amada mesmo que ela envelheça e já não tenha a saúde de que gozava, anos atrás. Então, por encantamento e com amor, achamos que rugas são lindas e não nos importamos, absolutamente, se o corpo não tiver a firmeza e a escultura de antigamente. O tempo altera as formas, mas preserva o encanto, quando há amor.

            Um vínculo profissional precisa, igualmente, de encanto, que nos faz superar as próprias forças e vencer todos os desafios de uma atividade. Se ela nos encanta, levamos adiante projetos e sonhos, e nenhuma dificuldade nos faz esmorecer. Encantados pelo que fazemos, nos desdobramos para alcançar objetivos, não temos reclamações nem queixumes e sobra motivação!

            Amigos se encantam mutuamente, e isso aprimora os laços de amizade e torna o convívio prazeroso. Se desaparecerem a admiração, o carinho e o respeito, sentimentos essenciais ao trato, os amigos se perdem na caminhada que faziam lado a lado, e nada os une de novo, como antes era. Amizade é feita de sutil delicadeza e de uma ocupação com o outro sem ultrapassar os limites da privacidade a que cada um tem direito.

            Lugares que nos encantaram se guardam na memória, e os visitamos em recordações e saudade. Passeios encantadores, que não repetimos, são revividos na paisagem da imaginação. Momentos felizes e inesquecíveis, que jamais aconteceram de novo, não perdem o encanto e nos seduzem em relembranças que não conseguimos evitar nem queremos! Palavras que nos fizeram cair em estado de êxtase se ouvem nas batidas do coração e algumas nos aprisionam em reminiscências de que não podemos escapar, por maior que seja o esforço por esquecimento. O passado insiste em voltar quando não sabemos como nos desvencilhar do que está nele, e é preciso reconhecer que isso não só é possível como é necessário para nos fazermos libertos do peso amargurado da nostalgia.

            Encantar-se pela vida é o que nos coloca em pé a cada amanhecer e nos anima ao que virá depois de noites emocionais que nos submetem à prova de resistência e bravura. Abrir os olhos com alegria, respirar a pleno e sorrir com bom ânimo, saudando o simples, admirável e belíssimo fato de existirmos, é puro encantamento, que explica por que nos sentimos indelevelmente felizes, apesar de tudo e por todas as razões, inclusive as que são imperceptíveis aos distraídos, apressados e insensíveis, e que merecem aplauso, reverência e extrema gratidão por fazerem parte do insondável – e encantador – mistério do viver!

     (*) Crônica publicada na edição de 21 e 22 de janeiro de 2011 do jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS.

2 comentários:

  1. Ufa!!! Não tinha parado para pensar como encantar-se é de uma profundidade incrível. É uma pena, quando o encantamento perde o seu valor e a frustração ocupa o seu lugar.

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  2. Adorei!
    (Levei para o meu blog!)

    Beijos!

    :))

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