sábado, 3 de novembro de 2012

Reencontros (*)

Vera Pinheiro
            De repente, sem notificação prévia para amenizar o inevitável susto, encontramos o passado numa hora qualquer desta vida. De uns a gente tem vaga lembrança e alguma dúvida sobre quem seja. Isso demonstra que a pessoa teve pouca ou nenhuma importância para as nossas emoções. Às vezes nem do nome nós lembramos e o constrangimento se apresenta inteiro diante da pergunta: “Lembras de mim?”. É de bom tom não confessar que temos recordações mais precisas do cãozinho de estimação que morreu há cinco anos. Então, um sorriso gentil salva a cena e a pessoa supõe que, sim, lembramos dela. A conversa, por mínima que seja, resta tensa, dado o sincero temor de que sejamos arguidos em nossa memória afetiva que, em relação àquela pessoa, tem carimbado um “Nada consta”.
            O melhor desse reencontro é quando dizemos “Tiau, foi bom te ver”, pelo alívio que causa. Somente mais tarde, entre remexidas de cabeça no travesseiro e passeios pela memória, talvez – mas sem nenhuma garantia –, quem era vaga lembrança passa a ser parte de um feliz reencontro.
            De outras vezes, já de véspera as sensações anunciam emoções fortes. Buscamos o horóscopo para ver se é alguma conjunção astral a responsável pela angústia indefinida que nos assombra antes de nos confrontarmos com quem ainda é capaz de fazer o nosso coração bater descompassado e que nos deixa com as pernas bambas a ponto de buscarmos uma escora por medo de desfalecer. Se não for um problema de saúde que mereça atenção médica é um daqueles reencontros esperados por toda uma vida, mas nunca planejados o suficiente para não despencarmos do nosso sólido equilíbrio.
            Tudo o que vivenciamos com aquela pessoa vem à tela mental como se estivéssemos vendo o filme da própria vida. Comédia românica ou drama, tanto faz. Não importa quantos anos se tenham passado. Se a recordação está viva é porque o outro não foi colocado na vala do esquecimento, e é bem possível que tenhamos querido muito esquecer, mas não conseguimos.
            Quando reencontramos alguém que mexe com as entranhas dos nossos sentimentos é grande o esforço para nos mantermos contidos, sem pular no pescoço alheio para encher de beijos quem lota a nossa vida de saudade e que, outra vez, está bem diante de nossos olhos, ao alcance de uma carícia. O tom da conversa e a profundidade do olhar vão mostrar se tudo sucumbiu ao silêncio e à distância ou se há chance de o passado emendar sua história com o presente, produzindo outro inesquecível capítulo entre os dois.
            E há encontros de velhos amigos que logo armam uma festa quando se avistam. A ausência não consegue corroer uma amizade selada no coração. Assim, o antigo diálogo reinicia como se jamais tivesse sido interrompido e queremos atualizar as novidades que ainda não são nossas velhas conhecidas. Ansiamos por compensar todo o tempo que não passamos juntos, embora saibamos que haverá nova despedida.
            Há, ainda, reencontros que faríamos qualquer coisa para evitar. Dobraríamos a primeira esquina; nos abaixaríamos, fingindo pegar algo no chão, puxaríamos a gola até as orelhas e o chapéu até cobrir o rosto. Numa atitude extrema, disfarçaríamos a nossa presença como manequim vivo dentro de uma vitrina ou tentaríamos nos esconder em uma arara de roupas na loja mais próxima. Podemos avaliar a possibilidade de forjar um desmaio até sermos retirados de olhos fechados daquele local. Para não corrermos maiores riscos, há a hipótese de pegar um jornal emprestado e nele enfiar a cara até que o perigo do reencontro seja totalmente superado. Vai da coragem de cada um. E de sua criatividade.
Porém, pensando bem, todo esse desgaste é pura tolice. Não tem sentido, pois já passou o fato que nos vinculava a alguém e nada vai impedir que a vida siga seu curso. É inútil qualquer manifestação de ressentimento. Um cumprimento rápido que demonstre civilidade e um adeus colado nele, nada mais.   É preciso esvaziar as mágoas até que possamos beirar a indiferença. Deste modo seguiremos adiante, leves e livres do fardo que carregamos quando nos damos o trabalho de detestar alguém, ainda que tenhamos razão para fazê-lo. O passado guarnece as lembranças, mas não é a nossa moradia. Deixemos que ele fique em paz onde está e vivamos o presente que o momento presente é. A menos que uma recaída sentimental compartilhada valha muito, claro.
(*) Crônica publicada na edição de 03/04 de novembro de 2012 no jornal A Razão, de Santa Maria, RS.

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