sábado, 17 de março de 2012

A arte de viver só (*)

Vera Pinheiro
            Viver só muita gente vive. Mas viver só e feliz nem todos conseguem. A arte de viver só e, apesar disso, ser feliz se aprende no cotidiano. Não há fórmulas, receitas nem manuais que ensinem como fazê-lo, e a experiência alheia serve apenas como uma referência. Do que o outro vive nem tudo se aproveita, mas ainda assim é válido observar o método de sobrevivência que deu certo para alguém e tirar o que combina com o nosso jeito de ser. Se há décadas me perguntassem se eu quereria viver só, não titubearia em negá-lo e botaria na vitrola a canção que diz “É impossível ser feliz sozinho”. Mas é um fato. Acontece. Não há dor na constatação. Não há mais dor, hoje é apenas uma constatação.

            A solidão não é exatamente uma escolha, mas conseqüência de nossas escolhas e resultado dos nossos vínculos amorosos ou da ausência deles, e independe dos mil amores que tivemos enquanto buscávamos compartilhar a vida com alguém. A solidão acontece meio devagar, não vem a passos largos, não se instala de repente. Um dia a gente olha em volta e reconhece: “Pois é, estou sozinha”, e ao chegar nesse estágio, já teremos derramado todas as lágrimas e perdido incontáveis noites de olhar grudado no teto em uma busca inútil por respostas, e talvez elas não existam mesmo.

            Antes de nos percebermos sozinhas, cultivamos todas as ilusões do amor eterno e até nos vislumbramos com chinelinhos batidos ao lado de outro par de chinelos gastos de caminhadas com a pessoa amada. Sonhamos bastante com o amor antes de sucumbir à realidade da solidão, mas quando a encaramos ela já não tem a aparência de um fantasma a assombrar nossa velhice. Tampouco a consideramos como inimiga da felicidade ou como algo que anule ou inviabilize as nossas expectativas.

            O passar do tempo e a intimidade que tomamos com a solidão trazem certo conforto. Estar, ser e viver só não ganha contornos de problema, nós nos concentramos nas soluções. Contabilizamos as vantagens e pensamos menos nas desvantagens disso. Aliás, sequer nos importam as desvantagens, procuramos ver o lado bom de ninguém junto e descobrimos uma capacidade extraordinária de fazer a felicidade de um ângulo ainda não experimentado.

            O que poderia ser motivo de amargura vira diversão. Um prato apenas, dois talheres, um copo. Nada de pia cheia e pilhas de roupa para lavar. Tudo em volta fica organizado... ou bem bagunçado, e ninguém tem a ver com isso! Nenhuma reclamação de cardápio ou de horário. Apuramos o nosso paladar e fazemos agrados e concessões sempre que nos achamos merecedoras de algum excesso. O tempo do outro deixou de ser nosso algoz, temos um ritmo próprio, e andamos conforme exigências nossas, não alheias. Tudo em casa nos pertence. Não há que pensar na hipótese de dividir CDs, filmes e livros, bens que não devem entrar em qualquer partilha, no caso de separação!

            Não nos preocupamos com o volume da música, com o estilo musical, com a emissora de rádio, com o controle remoto da televisão, com as horas em frente ao computador. Atendemos as ligações que quisermos, não há cobranças querendo saber onde estamos, fazendo o quê e para onde vamos. E podemos desligar o telefone, dormir com a cara lambuzada de cremes ou com uma camiseta velha, que ninguém se importa. Podemos acordar feias – terá algo melhor que isso? Cabelos desgrenhados, tudo bem, ninguém olha. E curtimos o silêncio com profunda e inexplicável gratidão! Podemos ficar bem quietinhas, mergulhadas em lembranças e reflexões por quanto desejarmos ou precisarmos, e não há quem nos tire dessa toca interior.

            Temos chance de fazer boas amizades e não nos incomodam os casais. Sentimo-nos perfeitamente à vontade como estamos. Não somos ciumentas de quem anda acompanhada e, cá para nós, às vezes sentimos um grande alívio por termos nos libertado da necessidade de ter alguém que anoiteça e amanheça colado em nós, respirando os nossos pensamentos. E o banheiro? Ah, nada mais recompensador do que a intimidade preservada! Porta aberta, cantoria desafinada e o espelho todo nosso!

            A parte chata de ser só é ouvir uma maravilhosa canção de amor e não ter uma única pessoa que se encaixe nela, ler um poema e não enquadrar os versos em alguém. É chorar sem um colo, rir sem um abraço e não ter a quem dizer “bom dia” e “dorme bem” que não seja pelo Facebook.
           
             Crônica publicada no jornal A Razão (Santa Maria/RS) na edição de 17/18 de março de 2012.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Quem não combina mais com a gente

Vera Pinheiro

Algumas pessoas do nosso convívio são como as meias 7/8, pretas e rendadas que encontrei no meu armário. Não tenho a menor ideia desde quando e por que estão lá e, pior, por que, com e para quem eu teria colocado minhas pernas nelas! Quem teria merecido o tamanho sacrifício de usar aquela peça desconfortável? Que raio de fetiche teria sido esse, hoje tão avesso a mim? Vou fazer com elas como faço com peças íntimas, que não dou a ninguém: cortar em pedacinhos! Como é que a gente vai dar calcinhas e sutiãs para outra pessoa, hã? Não pode.

Pensei em deixar uma sacola de doações na porta da igreja perto de casa, mas já pensou se o padre me pega com um pacote de meias 7/8, pretas e rendadas?! Como eu explico isso? Nenhuma paroquiana que se preze nestas redondezas chegaria a tanto. Quem sabe entrego num lar de vovozinhas? Acho que elas preferem um bom par de meias de lã. Eu escolheria isso.

Enquanto penso se rasgo ou faço picadinho do malfadado saco de meias de nylon – coisa fina, isso eu reconheço! –, percebo que algumas pessoas na vida da gente são assim também: não combinam mais. Podem continuar sendo – e certamente são – pessoas boas, bonitas, interessantes, mas não encaixam mais conosco. O relacionamento não funciona. A gente simplesmente não combina. Os caminhos não se encontram mais, falta assunto, não há a necessária semelhança de interesses que havia antes. E não é que a gente não goste, até gosta, mas é como botar nos pés aquele sapato maravilhoso e que é insuportável nos dias atuais. Era, mas deixou de ser. E ninguém tem culpa, isso faz parte da evolução humana, e cada um a seu tempo.

É como se a vida tivesse desviado a gente dessas pessoas que faziam parte de nós. Forma-se, então, um grupo de amigos e amores que não fazem mais sentido. Então sumimos todos. Nem saudade a gente sente. Há um vazio no lugar em que havia uma pessoa, e este espaço somente será preenchido quando a gente encontrar alguém que se identifique com o que somos hoje, com os nossos novos gostos, a nova aparência, os quereres do nosso espírito, sobretudo.

A gente tem certeza que não há mais sintonia quando a gente vai para um lado e a pessoa segue por outro. Um gosta de bar, outro de leitura. Um bebe cerveja, o outro prefere chá. Um vive a expansão interior e o outro está na fase do deslumbramento com o exterior. Um fala demais, o outro silencia. Não andariam de mãos dadas por cinco minutos.

A gente sabe quem combina quando há uma sensação que sussurra ao coração: eu seguiria contigo pelos teus caminhos pelo resto dos meus dias, e tu virias pelas estradas que percorro com a mesma alegria que sinto quando estamos juntos. Pode ser apenas um amigo. Pode ser um grande amor. Se combinar, faz sentido. Se não combinar é como aqueles pares de meias lindas, mas inúteis que geram a pergunta: o que vou fazer com isso?! Nada! Não há mais nada a fazer além do afastamento. Não precisa fazer picadinho da pessoa, claro.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Nada mais a ver com a gente

Vera Pinheiro

Ontem tirei boa parte do dia para mexer nos meus armários. Primeiro queria apenas dar uma organizada, mas depois me rendi à evidência de que tinha coisas em excesso e, muitas, que não têm nada mais a ver comigo. Isso é muito curioso. Não deixei de gostar de várias roupas e de muitos pares de sapatos, apenas as peças se tornaram inadequadas para mim do jeito como sou hoje, ou como me tornei, o estilo de vida que adotei, a minha maneira de ser. Simplesmente não combinam mais comigo.

Fiz então uma experiência quase infantil: experimentei as roupas e os sapatos e passeei em frente ao espelho, me observando. Tive sensações bem estranhas. Olhava para aquela pessoa e não me reconhecia nela. Eu me perguntava, então, quem fui e em que momento deixei de ser, o que aquelas peças significavam como expressão do meu ser e quando foi exatamente que houve a ruptura ontem constatada.

Isso levou algum tempo, o suficiente para eu organizar tudo em sacolas para doação. Apenas não sei quem vai querer receber. As roupas são – ou eram – tão a minha cara que outra pessoa, mesmo necessitada, não sei se terá coragem de usar. Os sapatos eu guardei até descobrir alguém que não passe mal com altura e que tenha equilíbrio suficiente para não desabar de um salto absurdamente alto. E olha que não sou baixinha para buscar nisso uma compensação. Era um incompreensível gosto mesmo de olhar o mundo de cima. Que bobagem...

A vida é tão mais pacata e feliz em cima de um calçado cujo sinônimo seja conforto! Além disso, nada vale os sacrifícios que a gente se impõe querendo ficar bonita. Ando numa fase creme no rosto lavado e cabelos escuros. Aí, só para contrariar – vai entender! - alguém me perguntou o que eu ando fazendo para estar com a aparência de quem fez alguma reforma no rosto. Até faria, juro, mas não é o caso. Aliás, eu me internaria para duas coisas que justificam ir para o hospital: fazer plástica e ganhar filho.

Expliquei, então, para a curiosa que não tenho patrão nem marido. Isso faz um bem enorme à pele!

terça-feira, 13 de março de 2012

Em busca de explicação

Vera Pinheiro

Como é que a gente deixa de fazer uma coisa que era prazerosa? Não, não é o que vocês estão pensando... Se bem que... Bem, deixemos isso para lá...rsrsrs.

Estou em busca de explicação para o fato de eu não escrever com a regularidade de antes, todos os dias. Não é preguiça, tampouco falta de inspiração ou de vontade. Simplesmente o dia passa e não abri a tela do computador.

Não fosse a crônica semanal e um ou outro pitaco no Facebook, não digitaria uma só palavra. Tem a ver com o meu silêncio interior, claro, mas não posso deixar de fazer algo que ainda me agrada muito, e não posso me queixar de falta de tempo porque sou dona dos meus horários.

Pensando nisso hoje cedo – sim, eu continuo levantando cedo apesar de não trabalhar mais fora, só do portão para dentro –, observei que me deixo seduzir pelos apelos domésticos, pelo que há por fazer no quintal, além dos cuidados da minha família animal. Essa parte sempre ficou em segundo plano. Primeiro, o emprego; todo o resto, depois.

Mas como, então, eu conseguia escrever? Porque era a primeira coisa que eu fazia, logo ao acordar. Sendo assim, vou deixar tudo de lado – nem a cama vou arrumar! – e voltar minha atenção para o computador na primeira hora do meu dia.

Estou com saudade de mim e da alegria que sinto quando escrevo. Posso me reencontrar, ainda bem. Já encontrar algumas pessoas, de quem sinto saudade, não depende apenas de mim. Ou nem depende de mim, mas delas. E elas não sentem falta de mim, senão parariam um instante – assim como estou fazendo para repensar os meus escritos – e buscariam uma explicação e uma solução para a ausência. A gente só quer de volta o quê e quem faz falta. No mais a vida segue entre lembranças e esquecimentos.

Mulher ciumenta (*)

Vera Pinheiro 
            Numa dessas tardes quentes, em um movimentado Shopping Center de Brasília, tomava sorvete com uma amiga que, por sua beleza e estilo, chama a atenção por onde passa. É um daqueles tipos vistosos, que parecem saídos de uma página de revista. Ela é tão charmosa que, segundo me confidenciou, tem problemas sérios de relacionamento com as amigas. Não a querem por perto se estão com namorados e não a chamam para sair se estão sozinhas para não enfrentarem aquilo que consideram concorrência no disputado mercado da preferência masculina (como se não fossem as mulheres que escolhem os homens, e não o contrário...). Aliás, se fosse uma concorrência não seria desleal, porque é uma mulher linda e, por enquanto, com as peças originais. Só fez algumas agulhinhas de botox e uns preenchimentos básicos.
            Está bem, eu conto, ela também achatou a barriga, levantou os seios, tirou os culotes e corrigiu aquilo que a lei da gravidade não perdoa. E como ela diz: “Comprei, paguei, é meu”, referindo-se aos apliques que usa nos cabelos. A parte original, então, é por conta de um excelente humor que não se abala, de um otimismo a qualquer prova e de uma fantástica vontade de ser feliz, e merece. É assim desde que a conheço, e não é de ontem, faz tempo. Por ser ela uma pessoa muito divertida, vez por outra saímos juntas, e não tenho qualquer complexo de inferioridade. O que sobra na aparência dela está na minha imbatível autoestima. Assim, nem me viro quando um homem passa olhando na nossa direção, pois sei que não é para mim que ele torceu o pescoço, e não desperto ciúmes, o que é um grande alívio e uma boa compensação.
            Pois bem, nesta semana olhamos as vitrinas e optamos por algumas gostosas calorias. Ah, sim, além de tudo, essa amiga minha nem se dá ao trabalho de fazer regime. Alcança a perfeita relação de peso e altura com a maior facilidade. Isso também gera uma ciumeira danada da coitada.
            Nem me lembro qual era o assunto que ela interrompeu de súbito! Com uma mão me estendeu o sorvete dela e com a outra abriu a bolsa onde carrega de tudo um pouco! Bolsa escancarada sobre o banco, ela se benzeu três vezes, pegou um ramo fresco de arruda que tinha guardado em uma caixinha, abriu um vidro com uma água de cheiro preparada, aspergiu sobre o raminho e depois sobre a cabeça, murmurando umas palavras que não pude ouvir. Afastou os cabelos e botou a arruda na orelha, cobrindo-a depois.
            Eu, de olhos arregalados, nem piscava! “O que será que está dando nela?!”, pensava, enquanto o sorvete descia rasgando a minha garganta. Não é bom comer gelado com a pressa que eu tinha de engolir para poder falar. Quando, enfim, consegui balbuciar “O que foi?!”, olhei para mim, com um sorvete em cada mão, fazendo pose de gulosa, que não sou. Olhei para os lados para ver se estava acontecendo algo e nada vi que pudesse tirar o sossego da minha amiga. “Teria sido um dos “ex”, o mais incomodativo, que passou por aqui? Alguma inimiga de infância cruzou na frente?”. Nada. Tudo calmo, menos ela.
            - “Fala logo! O que houve?”.
            - “Recebi um olhar tão ruim daquela mulher que me limpei e protegi!”.
            - “Hã?! Que mulher? Do que estás falando?”. Cada vez eu entendia menos! Sabes quando a gente demora a se situar e precisa de informações complementares para identificar a cena? Pois era isso. Quem? Quando? Como? Onde? Por quê?
            - “Não viste aquele casal que passou pela gente?”. Enquanto falava, mantinha dedos da mão esquerda cruzados e dedos da mão direita em figa.
            - “Amiga, presta atenção! Tudo o que, neste momento, me interessa é um singelo sorvete de casquinha, misto de chocolate com baunilha. O mais é secundário.”.
            - “Veio um casal em nossa direção. Nem cheguei a olhar detidamente o homem. Só posso dizer que ele era bem alto e ela, baixinha. Talvez isso tenha me chamado a atenção e fiquei olhando o casal e ele me olhou também, mas sem interesse (a gente sabe a diferença!). Olhou sem se fixar, mas ela percebeu e então cravou um beliscão nele – eu vi! – e me lançou um olhar de seca pimenteira arrasador!”
            - “Então fizeste muito bem, querida, porque a gente deve temer poucas coisas nesta vida, mas, com a mais absoluta certeza, mulher ciumenta é uma delas”. Evitar faz bem e todo cuidado é pouco!         
            Crônica publicada no Jornal A Razão, de Santa Maria, RS,
            edição de 10 e 11 de março de 2012.
           

Já faz tudo isso?!

Vera Pinheiro
Gente, o tempo está conspirando contra mim, só pode! Como é que pode passar tão depressa?! Então já faz tudo isso que eu não posto?! Pois na sequência está a crônica da semana, especial para quem sabe - ou para quem duvida do que seja - o que é uma mulher ciumenta!

terça-feira, 6 de março de 2012

Momentos nossos!

















Pensando nos aniversários passados

Vera Pinheiro
Cada vez mais observo os meus pés e vejo que eles apontam para frente, não se direcionam ao passado. É para frente que se anda! Mas não custa a gente dar uma olhadinha no passado e rever momentos felizes nessa visita breve. E como nós mudamos à medida que o tempo passa. Ainda bem. Não queria ser a mesma - estagnada - pessoa de anos atrás! Quero a evolução, difícil ou não, mas sempre necessária. Nas fotosque posto a seguir, momentos nossos com Camila. A gente mudou muito. Ainda bem...

O aniversário da minha filha

Vera Pinheiro
Neste ano a gente comemorou o aniversário da minha filha Camila de um jeito diferente, mas igual aos outros em alguns aspectos. Explico. Mantivemos a tradição de passar o dia juntas - ela, de férias; eu, aposentada - e fizemos bastante coisas que estavam na agenda "necessária", aquela que contém itens inadiáveis. O dia rendeu, portanto! Tanto rendeu que ela já se recolheu, mas eu ainda estou no pique! Na verdade, ela está recuperando forças para a verdadeira comemoração dos seus 28 anos, a que acontecerá nos próximos dias não em Brasília, não comigo, não em Campinas com o irmão Guilherme, mas na França, durante o período em que participa como palestrante do 6º Forum Mondial de L´Eau, em Marselha. Ela falará sobre "A preventive proposal to reduce health impacts related natural dissasters by flood". Vai brindar em Paris o seu aniversário e eu tenho a mais absoluta certeza de que ela merece! Porque até aqui ela se esforçou, batalhou e fez por onde chegar aonde quer! Sucesso, vitória e muitas bênçãos, querida da mãe!!!

segunda-feira, 5 de março de 2012

Véspera de aniversário

Vera Pinheiro
Sempre me emociono quando recordo o nascimento das pessoas mais importantes da minha vida, os meus amados filhos Camila e Guilherme. Na véspera de 6 de março de 2012, enquanto espero o nascer dos 28 anos da minha filha, recordo com emoção a caminhada que fizemos juntas até aqui. Os melhores momentos, os desafios, as vitórias, as superações e, sobretudo, o imenso amor que nos une. Tudo passa como um filme das minhas lembranças. Então, ajoelho, abaixo a cabeça e ponho as duas mãos no peito, em profunda gratidão! Graças, graças, graças!

domingo, 4 de março de 2012

Estou cansada

Vera Pinheiro
            Sim, estou cansada! Muito cansada! Cansei de ler e reler manuais de etiqueta e bom comportamento que me tiraram a espontaneidade e a liberdade de cometer gafes sem me sentir culpada por isso. Cansei de me sentir obrigada a pedir desculpas pelo meu jeito de ser, que nem sempre combina com a expectativa das pessoas, e cansei de me sentir errada toda vez que exercito o direito de ser eu mesma, não importa como imaginam que eu seja.
            Estou cansada de me vestir de acordo com a ocasião e, sobretudo, conforme o que me cobram os olhares das pessoas que convivem comigo, mas não estão na minha pele para saber como me sinto quando a minha aparência contraria a minha vontade. Cansei de me sentir cobaia dos anseios dos outros, que exigem de mim o que nem eles conseguem ser ou fazer.
            Estou cansada de pedir licença para ser a pessoa que sou sem causar surpresas ou rechaços. Cansei de tentar conciliar o que me interessa com os interesses de pessoas que não têm coisa alguma a ver comigo a não ser o frágil vínculo de um trabalho temporário, que vai se esgotar quando eu não mais servir a elas.
            Estou cansada de opiniões contrárias às minhas decisões, sem que eu tenha pedido; de intromissões voluntárias, sem nenhum convite, de quem acha que pode invadir a minha privacidade sem qualquer reprimenda. Cansei de prestar conta da minha identidade para tentar, inutilmente, provar quem sou e a razão disso.
            Estou cansada de me exigirem as forças que me escapam, a coragem suficiente para as demandas que me colocam como desafios, a firmeza que se acaba ao sopro das circunstâncias mais difíceis do que eu poderia prever. Cansei de mostrar valentia que não tenho, de ser montanha quando estou planície, de ser torre quando sou janela escancarada, frágil ao ataque.
            Estou cansada de aparentar ser outra pessoa para não perder quem somente estima o brilho da minha luz, mas não compreende a importância das sombras que tenho. Cansei de me justificar perante os demais quando as intempéries emocionais arrasam o meu equilíbrio e devastam o que esperam de mim, transformando esperança em decepção. Cansei de decepcionar por terem, os outros, esperado muito além do que posso dar e ser.
            Estou cansada de scripts bem elaborados, dos discursos pré-elaborados, das sentenças previsíveis e de agendas sem espaço para o inusitado das surpresas. Cansei de cumprir fielmente os roteiros que fizeram para mim sem a minha concordância, das regras que me ditaram sem a minha anuência, das imposições feitas sobre a minha cabeça e que me aprisionaram sem direito à defesa. Cansei de sucumbir aos ditames alheios, que não me consultaram, impingindo atitudes que me agridem e violentam.
            Estou cansada de dar satisfação aos outros sobre escolhas que somente a mim dizem respeito, das vozes que se sobrepõem à minha na hora de eleger um caminho a percorrer ou uma pessoa a amar. Cansei de esperar que concordem comigo ou que, ao menos, não discordem de mim, e daquela sensação de desaninho quando todos discordam e me fazem sentir um erro sem conserto.
            Estou cansada de pessoas que tentam viver a minha vida, esquecendo-se das vidas que são delas, e das que me cobram uma racionalidade que se conflita com o meu emocional, pedindo que eu não tenha emoções, sensações, tampouco lágrimas para chorar as perdas, os sustos e o que não compreendo. Cansei de não ser compreendida quando peço um colo e me dão uma vala para enterrar meus sonhos, nas vezes em que preciso de amparo e me chamam para guerrear sem trégua.
            Estou cansada de esculpir a imagem de guerreira, sendo anjo. De me pedirem para agir como anjo enquanto empunham a espada no meu peito. De ter o peito aberto quando devastado de saudade e dor. De não sofrer pela dor e ofertar sorriso. De não sorrir, mesmo achando graça. De ser graciosa, quando estou fera. De ser quente quando o meu olhar esfria. De ser fria quando o meu sangue esquenta. De ser gente num mundo de manipulados e fingidores. Estou cansada de fingir a paz no meio da disputa e de aparentar ser tão boazinha como convém aos outros. Cansei de não me amarem como sou, mas pelo que sonham que eu seja. E estou cansada de ter de me cansar todos os dias com tudo isso para não abdicar do convívio, da presença humana, ou teria de viver apenas entre os bichos, que são os que verdadeiramente praticam a aceitação.
           
    Crônica publicada na edição de 3/4 de fevereiro de 2012 no jornal A Razão, de Santa Maria, RS.