sábado, 9 de junho de 2012

Prisioneiros da ilusão (*)

Vera Pinheiro
            Melhor um inimigo declarado do que um amigo falso. É o que costumamos dizer, à boca larga, manifestando que estamos mais preparados para o enfrentamento daquilo que reconhecemos, ainda que não seja bom, do que para lidar com falsidades. Entretanto, é corriqueiro nos cercarmos de ilusões para não nos confrontarmos com a realidade. Uma brincadeira de esconde-esconde com as circunstâncias, fazendo de conta que elas não são reais, por medo de que nos derrotem. E temos muito medo, associado à vergonha, de sermos derrotados, porque nos incentivaram a comemorar vitórias, mas não nos encorajaram a aguentar perdas e avarias em nosso ego ansioso por vitórias.
            Às vezes, a dor de uma experiência é tão insuportável que evitamos encará-la, então empreendemos uma fuga desesperada na direção contrária e nos cercamos da ilusão de que tudo é alegria. Isso é o mesmo que negar a sombra à existência da luz, o escuro como parte da claridade, o fim que está à espera de todo começo. A negação não elimina o fato, apenas o encobre.
            Fechando os olhos ao que não nos agrada enxergar não faz encontrar as soluções necessárias e quando temos coragem de afrontar nossos sentimentos negativos, eles se dissipam. Vivermos aprisionados nas ilusões não modifica a realidade com a qual não concordamos, mas estende a sua permanência por mais tempo.
            É o caso dos amores impossíveis, por exemplo. Os que não podem se realizar, os que têm impedimentos incontornáveis, os que estão minados de dificuldades indissolúveis. Não se concretizam, simplesmente, e a gente sente que assim vai ser, porque os dois pés na realidade mostram que o caminho a dois tem um abismo que não pode ser transposto. Ou até, quem sabe, poderia ser vencido, mas demandaria mudanças radicais desanimadoras. Esse sentir é tão impregnado de sabedoria interior que se entremostra com uma razoabilidade indiscutível. Sentimos a impossibilidade e a dor que isso representa. Julgando que somos incapazes de suportar tamanho desgosto, nos trancamos a chave dentro da ilusão de que um dia poderá ser como desejamos. Nós nos fechamos a outros amores, na ilusão de que aquele amor um dia será possível.
            Nessa ilusão, que nega a realidade, não vemos outras pessoas, vedamos chances de aproximação com outros contatos, e, pior, erigimos um pódio à figura inalcançável daquele amor, contemplando-a entre suspiros de esperanças e lágrimas de saudade. E a vida, deste modo, se passa entre ausências e solidão.          
            Ocorre o mesmo fenômeno quando decidimos nos incapacitar a olhar com sincera boa vontade os que nos cercam e os que se achegam a nós. No campo dos relacionamentos amorosos, isso é um desastre! Na ilusão de que seremos felizes só se encontrarmos alguém que se enquadre ajustadamente em um perfil modelado pelo idealismo, todos os humanos se encaminham para a inadequação ao posto de amor de nossa vida. A ilusão que nos aprisiona em um modelo que não existe ou em outro que veio e já foi, nos impede descobrir a beleza que existe em cada pessoa, mesmo quando ela não retrata aquele a quem amamos mais do que todos os outros e que se tornou referencial para nós. Se quisermos nos desvencilhar desses grilhões que nos fazem reféns de um amor passado ou idealizado, é preciso tomar consciência de que o ontem não voltará, por mais que queiramos. Resta-nos, então, viver integralmente as novas pessoas que se apresentam.
            Dá-se o mesmo com o trabalho almejado. A insatisfação, se considerada negativa, não gera chances novas. No desejo de encontrar alternativas e temendo não obter respostas, rodopiamos com os temores e deles nos acovardamos. Porém, se olharmos fixamente para o descontentamento, ele pode ser resolvido. Do contrário, negando-o para não promover desordem no conforto de “ao menos ter um trabalho”, se perpetuará a contrariedade, e o que se verá é alguém que tem o desprazer de trabalhar no que não gosta.
            A realidade, por mais aterrorizante que nos pareça, jamais será mais feia do que aquilo que não é real, embora seja belo. Olhemos para as nossas agonias sem sofrimento, mas assumindo o imperativo contato com que são. Sem negar as dores, que possamos nos conectar com elas para percebermos o seu significado. Deixemo-las passar, não nos aprisionando à ilusão de que não existem. Existem, sim, mas são meramente hóspedes, transeuntes, pois o que essencialmente nos habita é a felicidade.

(*) Crônica publicada na ediçao de 9/10 de junho de 2012 do jornal A Razão, de Santa Maria, RS.

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