Vera Pinheiro
Sim, estou cansada! Muito cansada! Cansei de ler e reler manuais de etiqueta e bom comportamento que me tiraram a espontaneidade e a liberdade de cometer gafes sem me sentir culpada por isso. Cansei de me sentir obrigada a pedir desculpas pelo meu jeito de ser, que nem sempre combina com a expectativa das pessoas, e cansei de me sentir errada toda vez que exercito o direito de ser eu mesma, não importa como imaginam que eu seja.
Estou cansada de me vestir de acordo com a ocasião e, sobretudo, conforme o que me cobram os olhares das pessoas que convivem comigo, mas não estão na minha pele para saber como me sinto quando a minha aparência contraria a minha vontade. Cansei de me sentir cobaia dos anseios dos outros, que exigem de mim o que nem eles conseguem ser ou fazer.
Estou cansada de pedir licença para ser a pessoa que sou sem causar surpresas ou rechaços. Cansei de tentar conciliar o que me interessa com os interesses de pessoas que não têm coisa alguma a ver comigo a não ser o frágil vínculo de um trabalho temporário, que vai se esgotar quando eu não mais servir a elas.
Estou cansada de opiniões contrárias às minhas decisões, sem que eu tenha pedido; de intromissões voluntárias, sem nenhum convite, de quem acha que pode invadir a minha privacidade sem qualquer reprimenda. Cansei de prestar conta da minha identidade para tentar, inutilmente, provar quem sou e a razão disso.
Estou cansada de me exigirem as forças que me escapam, a coragem suficiente para as demandas que me colocam como desafios, a firmeza que se acaba ao sopro das circunstâncias mais difíceis do que eu poderia prever. Cansei de mostrar valentia que não tenho, de ser montanha quando estou planície, de ser torre quando sou janela escancarada, frágil ao ataque.
Estou cansada de aparentar ser outra pessoa para não perder quem somente estima o brilho da minha luz, mas não compreende a importância das sombras que tenho. Cansei de me justificar perante os demais quando as intempéries emocionais arrasam o meu equilíbrio e devastam o que esperam de mim, transformando esperança em decepção. Cansei de decepcionar por terem, os outros, esperado muito além do que posso dar e ser.
Estou cansada de scripts bem elaborados, dos discursos pré-elaborados, das sentenças previsíveis e de agendas sem espaço para o inusitado das surpresas. Cansei de cumprir fielmente os roteiros que fizeram para mim sem a minha concordância, das regras que me ditaram sem a minha anuência, das imposições feitas sobre a minha cabeça e que me aprisionaram sem direito à defesa. Cansei de sucumbir aos ditames alheios, que não me consultaram, impingindo atitudes que me agridem e violentam.
Estou cansada de dar satisfação aos outros sobre escolhas que somente a mim dizem respeito, das vozes que se sobrepõem à minha na hora de eleger um caminho a percorrer ou uma pessoa a amar. Cansei de esperar que concordem comigo ou que, ao menos, não discordem de mim, e daquela sensação de desaninho quando todos discordam e me fazem sentir um erro sem conserto.
Estou cansada de pessoas que tentam viver a minha vida, esquecendo-se das vidas que são delas, e das que me cobram uma racionalidade que se conflita com o meu emocional, pedindo que eu não tenha emoções, sensações, tampouco lágrimas para chorar as perdas, os sustos e o que não compreendo. Cansei de não ser compreendida quando peço um colo e me dão uma vala para enterrar meus sonhos, nas vezes em que preciso de amparo e me chamam para guerrear sem trégua.
Estou cansada de esculpir a imagem de guerreira, sendo anjo. De me pedirem para agir como anjo enquanto empunham a espada no meu peito. De ter o peito aberto quando devastado de saudade e dor. De não sofrer pela dor e ofertar sorriso. De não sorrir, mesmo achando graça. De ser graciosa, quando estou fera. De ser quente quando o meu olhar esfria. De ser fria quando o meu sangue esquenta. De ser gente num mundo de manipulados e fingidores. Estou cansada de fingir a paz no meio da disputa e de aparentar ser tão boazinha como convém aos outros. Cansei de não me amarem como sou, mas pelo que sonham que eu seja. E estou cansada de ter de me cansar todos os dias com tudo isso para não abdicar do convívio, da presença humana, ou teria de viver apenas entre os bichos, que são os que verdadeiramente praticam a aceitação.
Crônica publicada na edição de 3/4 de fevereiro de 2012 no jornal A Razão, de Santa Maria, RS.
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