Vera Pinheiro
Minhas habilidades domésticas são
boas. Ponto. Por mais que a minha elevada autoestima reclame da nota média,
devo reconhecer que sou apenas boa nas lidas do lar. Não tive muito tempo para
aprimorar dotes culinários, donde me resta alguma esperança de que possa melhorar
pelo fazer continuado nesses tempos de aposentadoria. Porém, sou esforçadinha. E
a gente sabe que o esforço compensa as eventuais – e não muito graves – falhas
de competência. É o caso.
Para cozinhar, por exemplo, preciso
de ingredientes, claro, e de máxima concentração, o que não me impede de ouvir
um CD de mantras que fica engatado no ponto para rodar no aparelho de som da cozinha,
que considero área nobre da casa. De
orar gosto e posso, mas prefiro não conversar enquanto cozinho, e entreter
visitas nem pensar, se estou fazendo um prato, por trivial que seja. Marco hora,
preparo tudo antes de a pessoa chegar, e me escabelo se a criatura chega antes
e quer ajudar.
Certa vez, um querido amigo meu, a quem
eu recebia em casa com a mulher dele, disse que eu parecia uma barata tonta
nesse sagrado local. É que ele não fechava a boca! Desde então, separo visitas
do local do preparo de alimentos para que todos possam saborear os meus
quitutes que, aliás, boto tanta fé no sucesso deles que sequer provo enquanto
cozinho. Isso é que é autoconfiança!
Meus filhos têm, ambos, memória
privilegiada com relação aos meus feitos e defeitos. Quando querem me chatear
puxam uma fileira de histórias de fiascos gastronômicos que cometi, sendo eles
as minhas vítimas, quando não alguém de fora. Isso fez parte do meu
aperfeiçoamento, a duras penas e a quilos de sal. Hoje eu me tenho por uma boa
cozinheira, embora quase sempre esteja no limite entre o susto e a surpresa. De
vez em quando a panela queima, fazer o quê?
Justamente aquela panelinha que eu
amo tanto foi a que ganhou uma casca grossa no fundo, por conta de um
telefonema na hora de preparar o almoço. Depois disso tomei uma providência:
boto o telefone no silencioso, desligo, não atendo ninguém, enfim. Somente
volto ao contato depois que a mesa está servida e enquanto não chega a pessoa
que vai se sentar comigo. Acho muito feio alguém ocupar a orelha e a boca ao
mesmo tempo. A gente pode falar depois da refeição, o mundo não vai desabar se
fizer isso. E é bom não se esquecer de pedir licença aos outros antes de
atender o celular, pois tem gente que não se dá conta, mas está conversando
conosco e de repente para o assunto e fala horas com alguém que não está
presente. De corpo presente, quero dizer, mas interfere e atrapalha mesmo assim.
E o que é que eu faço com a minha
rica panelinha queimada? Esconder o fato era impossível, porque o cheiro de
queimado se estendia a légua e meia de casa. A primeira opção era jogar no
lixo, torcendo para que alguém mais paciente a encontrasse e desse uma limpeza
geral, recuperando-a para uso. Para limpá-la, seguramente eu deixaria as pontas
dos dedos nela, tamanho o estrago havido. Pensei em raspar com uma faca e vi
que seria um caminho fácil para furar o fundo dela, sem contar o risco de me
cortar com aquele fio que a gente só vê o quanto é afiado quando tira um bife
da mão. Pedir ajuda era hipótese descartada. Desisti do restauro imediato,
então. Dez a zero da panela queimada contra mim!
Articulando mentalmente um adeus honroso
e digno para ela, enchi de água a panela e quase verti lágrimas dos olhos!
Lamentei a total impossibilidade de aproveitar o conteúdo e toquei a vida de cozinheira
em frente naquele dia, não sem pensar que havia despencado alguns degraus na
minha qualificação doméstica. A tempo de evitar ficar deprimida, tomei o
ocorrido por mero tombo no percurso.
Três dias se passaram e a panela,
recostada na pia, esperava a minha decisão sobre o que fazer com ela.
Finalmente, então, enfrentei a situação. Vou jogar fora! Mas não precisou. Ao
retirar a água, o fundo queimado havia se soltado e pude lavar a panela sem
qualquer dificuldade. Foi assim que aprendi a não tomar decisões precipitadas
com relação a fatos e a pessoas. Quando a raiva queima, a gente bota água na
panela das emoções e deixa de lado. A raiva se solta e a gente fica livre de
sentimentos negativos que não prestam para nada!
(*) Crônica publicada na edição de 20/21 de outubro de 2012 do jornal A Razão, de Santa Maria, RS (www.arazao.com.br).
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