Vera Pinheiro
“Amigos posso contar nos dedos... e não enchem uma mão”. “Amigos são meus dentes... e me mordem”. Assim como essas definições negativas a respeito dos amigos, tudo já foi dito de mais lindo sobre eles. Da memória da minha juventude, uma frase recorrente que minha mãe dizia: “não namores vizinho, porque, se o namoro acaba, perdes também o amigo”. Naqueles tempos, segui a lição, mas me pergunto que futuro teria se me deixasse embalar pelos olhinhos verdes do vizinho da casa ao lado, tão meu amigo de todas as horas, que ficava perto quando eu adoecia e, por horas, conversava comigo sob o sol das manhãs de inverno.
Adulta, excluí os amigos das possibilidades do amor. “Amigo, não” era um lema para mim. Sempre evitava que amigo se transformasse em namorado, talvez por acreditar, à época, mais na permanência da amizade do que na eternidade do amor. Mais tarde, usei a amizade para me escudar do amor. Quando alguém me encantava e eu já mostrava sinais de paixão, logo transformava a relação em amizade, para fugir do amor. Hoje confesso que amei amigos sem que eles soubessem, sem jamais ter revelado. Admito que renunciei ao amor por quem, pensava, me via tão-somente como amiga, e estava na idade em que me poupava de riscos, o que agora, na fase pós-adulta, encaro sem medo nem travas, pois nada me impede de escancarar emoções e de deixar a alma nua diante de sensações e lembranças.
Como teria sido a minha vida se eu tivesse dito aos amigos que os amava mais do que amigos que eram, e muitos ainda são? Essa é uma pergunta sem resposta. Não há diálogo com o passado, apenas reflexão sobre ele em busca de compreensão a respeito do presente, enquanto o futuro se constrói a cada dia. Das poucas certezas, as de que tive mais amigos do que amores, vivi mais alegria com amizade do que fui bem-sucedida no amor e colecionei muitos amigos, mas poucos enamorados por mim. Não comparo uns e outros, pois todos estão na minha história. Ainda tenho por alguns amigos um profundo querer, enquanto outros habitam um recanto de saudade, sendo, todos, parte de mim.
Tive amigos que me traíram e enganaram, roubaram a minha confiança, desmereceram meu carinho, me deram rasteira, me derrubaram na primeira chance que tiveram, sem piedade ou compaixão, na crueza de sua vontade de me tirar do caminho que eles queriam fazer mais depressa, ainda que pisassem em mim ou me varressem do lugar. Tive amigas falsas, enquanto eu era devotada à sinceridade. Confidentes que não honraram a minha intimidade. Braços que deram abraços e depois, cotoveladas. Sorriso largo na frente e boca maldita nas minhas costas. Há histórias que pelo simples fato de rememorar ainda magoam, por isso jogo essas lembranças onde estavam: na busca do esquecimento, que vai além da desculpa e do perdão.
Todos os que cultivaram a traição serviram para me tornar uma pessoa mais atenta e, diria, seletiva, até. Aprendi como se separa o joio do trigo, a identificar uma jóia rara diante do falso brilhante, o que são cores firmes, nuanças e tintura que logo desbota. Ainda me engano, sem dúvida. Mas o espaço de tempo é mais largo entre as ocorrências. Amizade, não raro, parece um campo minado: a um passo em falso tudo explode. Mas não choro como antes, continuo meu aprendizado sobre mim e sobre pessoas. Com faro de bicho e alma de quem, lentamente, encontra sabedoria nas relações.
Ficaram os verdadeiros. Os amigos e amigas que fincaram – para sempre – bandeira na minha vida são os que importam, muito mais do que outros, que nunca foram. Permanecem os que cultuam a lealdade, os que vêm para trocar, não apenas para pedir ou só para se dar por um tempo, até que se completem. Os que abraçam com o coração e colam a alma na minha. Os que compreendem limitações, erros, imperfeições. Os que aceitam o perfil humano e a história que o construiu. Os que entendem dores alheias e as acolhem sem críticas. Os que não partem quando a festa e o dinheiro acabam nem se a fama e o sucesso passam. Os que ouvem sem condenar; os que falam, mas não o tempo todo, pois aprenderam silêncios cúmplices e a partilhar palavras boas. Os que nunca se ausentam, mesmo não estando perto. Os que atravessam madrugadas insones por solidariedade, os que seguram a mão que treme, o coração que dói, a tristeza que não passa. Os que respeitam sentimentos e ficam firmes quando minha determinação fraqueja. Os que não resolvem tudo por mim, mas me encorajam a fazê-lo e esperam junto pela solução. Os que atravessam meus dias de humor nublado, tempestades de emoções, furacão de ansiedade, medo maior que a coragem.
Ficam os que andam de mãos dadas sobre pontes que balançam, até cruzar todos os riscos e enfrentar todos os perigos. Os que são minhas asas se sozinha não posso voar, riso de vitória, acolhimento, oração. Ficam os amigos que vieram para unir seus caminhos ao meu e atar laços de coração que jamais se rompem, mesmo quando o tempo passa e apesar das ausências e distâncias que resultam das impossibilidades. Ficam os essenciais. Os que se importam comigo e me importam.
Nenhum comentário:
Postar um comentário