sábado, 23 de junho de 2012

A missão (*)

Vera Pinheiro

            No auge de sua juventude, a jovem brandia entre questionamentos sobre o que fazer da vida, e se angustiava por isso. Queria saber o destino que a aguardava e qual o melhor caminho para as suas expectativas de ter e ser o almejado. Enquanto isso, a vida se resumia a saltitar entre um amor e outro, e as maiores dúvidas se concentravam em escolher um vestido que lhe caísse bem e sapatos que permitissem andar com beleza, mas em comodidade também. Tinha bastante, mas convivia com a ânsia de descobrir um atalho que a levasse a conseguir o que gostaria, desviando-se das tristezas e contornando as decepções que fazem parte de todas as escolhas.
            Pai, mãe, irmãos mais velhos, uma amiga mais experiente, ninguém dizia, com segurança, o que era sentir-se realizada, e nela havia um medo inconfessado de não alcançar o que planejava. Porém, nem mesmo ela sabia o que era o tudo que queria. Era uma busca assentada em um querer imenso sem saber exatamente o quê, e queria saber o que, afinal, isso era.
            Foi então consultar-se com um mestre, esperando respostas prontas, seguras e precisas! Buscou nele escancarar a sua predestinação com clareza, querendo que ele conseguisse ler-lhe o coração, até mesmo em seus rabiscos.
            Encontrou-o em estado meditativo, numa serenidade extrema, fazendo o mundo parecer um lugar ausente de qualquer problema. Um lago sem ventanias. Um campo onde a lavanda lilás floresce sem pressa. O adormecer lento do dia em seu ocaso.
            - Mestre, qual sina é a minha? Que trilha seguir para me encontrar com tudo o que sonho? Como realizar a meta que almejo para a minha vida?
            O mestre sequer abriu os olhos para enxergá-la. Mesmo de olhos fechados, podia vê-la inteiramente à sua frente. As palavras traduziam a ansiedade da procura e delas emanavam ondas de uma vontade sem domínio.
            Ele se manteve em silêncio imperturbável, como se dormisse. Ela observava, atenta, o ir e vir da respiração tênue, como se a vida dele fosse terminar em um suspiro. Não tinha certeza de que ele falaria, tamanha a sensação de que o mestre não estava humano, mas imantado da presença divina.
            - Tens apenas uma obrigação e um compromisso. Não fujas deles. Cumpre-os com devotamento.
            A jovem arregalou os olhos, inquieta. Antes que o interrompesse com novas perguntas, o mestre falou de novo, em voz pausada e terna.
            - Alguns vêm ao mundo para trabalhar, estudar e aprender. Tu vieste a passeio.
            Ela ficou intrigada. Queria mais objetividade, mas ele falava por metáfora. Ficou calada, esperando explicação e significado.
            - A tua passagem pelo mundo, desta vez, é unicamente para ser feliz. A tua missão é totalmente voltada a promover a tua felicidade.
            Do sorriso de surpresa ao riso incontrolável, ela achou isso muito divertido e gostou da ideia de estar no mundo apenas com essa obrigação, mais nada.
            - Ah, que bom! Isso é muito fácil!
            - Aí é que te enganas. De fato, a felicidade é boa e fácil, mas precisarás investir boa vontade e sincero desejo de encontrá-la, ou ela escapará rapidamente de tuas mãos, antes que possa pensar retê-la.
            Ela ganhou um ar ensimesmado num repente, ao vislumbrar a seriedade do assunto.
            - O que devo fazer para cumprir a minha missão de ser feliz, então?
            - Para que leves a bom termo a missão de ser feliz, honra a vida que recebeste. Enaltece-a de gratidão a cada dia e não olhes com esmero as eventuais vicissitudes que atravessas. Encara os acontecimentos como um presente que recebes, aceitando-os de bom grado, sem reclamações, e dá-lhes solução pacífica que represente o máximo bem para os envolvidos. Ama intensamente as pessoas, inclusive as que dilaceram a tua sensibilidade, pois são as que mais ensinam sobre quem tu és. Sê vigilante com as tuas ações e reações e sê, delas, a única senhora e dona. Não te tornes igual aos que desprezas, tampouco tenhas inveja de quem admiras. Cultiva a tua essência bela sem comparativo com ninguém. Aprecia o teu valor imensurável e não permitas que alguém rebaixe a estima que deves ter por ti. Junta os bens que tragam conforto, mas a eles não te apegues. Lembra-te de acender o sol todos os dias no teu peito e iluminarás tudo em volta, fazendo brilhar a luz divina em teu olhar. Se chorares, que as lágrimas lavem as pequenas rugas da tua alma, para que ela seja cristalina, ainda mais! E sorri com quem está em permanente graça – e estás, tenhas ou não consciência disso. Tens as minhas bênçãos para que consigas cumprir a tua missão de vivenciar plenamente a felicidade cá na terra. Vai ser feliz e não voltes sem que tenhas desempenhado a tua missão.        
    
          (*) Crônica publicada na edição de 23 e 24 de junho de 2012 do jornal A Razão (www.arazao.com.br), de Santa Maria, RS.

sábado, 16 de junho de 2012

Eles também sofrem (*)

Vera Pinheiro

           Os homens sofrem tanto por amor, assim como as mulheres? Sim, eles sofrem, e mais agudamente do que nós, porque foram adestrados a não revelarem sentimentos de modo explícito como o fazemos (e podemos, sem críticas por nos expressarmos, ao contrário deles). A dor sufocada arrebenta por dentro, mas eles se mantêm impassíveis.
          Não vemos um homem se despedaçando em convulsivo choro ou se rasgando todo quando atravessa uma crise amorosa. É possível que faça isso tendo apenas o travesseiro como testemunha, porque, no mais das vezes, os homens são discretos no esboço de sua dor, que apenas os mais íntimos conhecem. Talvez por isso a nossa desconfiança de que eles jamais sofrem e que se posicionam, sempre, na condição de algozes, jamais de vítimas numa relação de amor, e ambas são indesejáveis.
          Por não encontrarem boa acolhida à dor que sentem, os homens se escondem em suas cavernas interiores e não saem de lá antes que estejam preparados para construir uma nova história. Porém, nem todos fazem isso. Muitos tomam o exato sentido contrário e se transformam naqueles tipos execráveis, a quem chamamos de “galinhas”. Apregoam que liberdade era tudo o que queriam, mas desmentem isso com o vazio que experimentam no girar da chave na porta sem ter alguém à espera (e mãe não vale!).
          Sem avaliar os sentimentos masculinos, reproduzimos a famigerada oposição entre os gêneros, que em nada contribui para o bom convívio dos humanos. Aborrecidas e impacientes com os motivos deles, nós os deixamos de lado, os transformamos em bons amigos e não acreditamos que eles sejam capazes de estabelecer vínculos duradouros. Estas são reações adequadas às expectativas deles, pois enquanto não estiverem curados, não quererão um relacionamento aprofundado nas emoções. Ficarão com várias mulheres e nenhuma o terá por inteiro, pois parte dele está aprisionada no passado que ainda repercute mágoas não resolvidas.
          A postura da fera ferida é, de duas, uma: o recolhimento na toca ou a luta. Manter-se no refúgio representa fraqueza para eles, cobrados que sempre são em coragem e decisão. A luta não é para curar o machucado, mas para provar que está vivo, apesar da alma em frangalhos. Para o homem, lutar até que se esgote o sofrimento significa cair na farra como se estivesse feliz, para depois chorar sozinho e em silêncio. O cara que está na rua todos os dias será aquele que vai louvar a boa rotina de mãos dadas com a mulher de sua vida, quando estiver com ela.
          Os amigos contribuem, e muito, para que o homem se negue a experienciar a dor em toda a sua profundidade. Se ele sofre, os outros o catam no meio de seu caos amoroso e o chamam à diversão, que não é verdadeira, mas entretém e faz passar mais depressa as horas. A cabeça, porém, não está ali, mas junto com o coração – sim, eles têm um! – que repete incansavelmente trechos da vida com a pessoa amada, que já saiu do cenário, mas não dos sentimentos. A saudade aperta, mas ele se impõe resistir bravamente.
          Com os olhos no passado, eles não enxergam outras pessoas, por melhores que elas sejam. Nós, então, questionamos se o problema é nosso, já que não conseguimos encantá-los. Se problema existe, no caso, é com a nossa boa autoestima que está, certamente, em baixa, a ponto de sugerir indagação como essa. É de se acreditar quando eles dizem que não é nada conosco, mas com eles. Geralmente estão sinceros, mas a gente duvida.
          Se um homem está sofrendo por amor, a pior boa ideia que uma mulher pode ter é investir na iniciativa de abordagem para a conquista. É grande a probabilidade de perda de tempo, com avarias na própria autoconfiança. Para eles o assédio feminino não é tão lisonjeiro quanto parece. Além de não saberem o que fazer com isso, ficam terrível e inconfessadamente constrangidos. Esse é um papel que os homens se reservam, e a nossa alternativa é a sutileza. Afinal, a mulher permite a conquista e a ela se rende. Digam o que disserem, isso não mudou. Ainda.

 (*) Crônica publicada na edição de 15 e 16 de junho de 2012 do jornal A Razão (Santa Maria, RS) - www.arazao.com.br

terça-feira, 12 de junho de 2012

Dia dos (que não têm) Namorados

Vera Pinheiro

Estou que olho as horas, esperando que a noite passe para terminar logo esse tal Dia dos Namorados, uma data que não existe no meu calendário! Ao quase final deste 12 de junho estou enjoada de coraçõezinhos vermelhinhos e saltitantes e de mensagens de amor por todo lado. Os shopping centers estão insuportáveis de tantas promoções ...para o Dia dos Namorados, claro. Se a gente entra e pergunta o preço de algum produto, a balconista logo quer saber da comemoração. Se dermos conversa, viramos amigas de infância no ato!
-  Não tenho namorado.
- Nããããão? Como assim?
A julgar pelo tamanho do espanto, parece que está me faltando uma peça! Não, eu sou normal, apenas não tenho namorado. Isso acontece!
            A outra pessoa não entende – ou será que não expliquei direito?!
            - Mas tão jovem, tão bonita...
            A afirmação tem certo “coitadismo” que me irrita, e vou ficando impaciente com o rumo que a prosa toma!
            - Ah, pois é. Mas não tenho namorado. Sabes me explicar por quê?
            Pronto! A mulher puxa a gola da minha blusa e começa a sussurrar no meu ouvido.
            - A culpa é deles!
            Nossa, que susto! Olhei rapidamente ao redor e não vi nenhum ET por ali, tampouco assombração na área.
            - Deles quem?!
            - Esses homens são os culpados da nossa solidão!
            Ahah! Ela confessou! É uma das minhas! Das muitas mulheres que não têm namorados era mais uma!
            Nisso me deu uma pena dos homens a ponto de quase chorar.
            - Ah, os pobres, a coisa não é bem assim, amiga.
            A essa altura eu também já cochichava no ouvido dela, segredando como velhas amigas.
            - A gente tem responsabilidade nisso. Para muitas de nós a solidão é uma escolha. E um dia como esse passa batido, nem damos importância, pois estamos acostumadas a ficar sozinhas e não fazemos disso um problema.
            Ela não se rende e continua:
            - Ah, mas como é bom a gente ter alguém para beijar na boca, andar de mãos dadas, dormir juntinho (ainda mais num frio desses), acordar junto, fazer planos junto, sonhar a dois, se ajudar, se amparar, trocar idéias, compartilhar vida...
            - Para! Stop! Nem continua que estou de saída! Os homens têm chulé, acordam com mau hálito, deixam as coisas espalhadas no banheiro, enchem a pia de louça, são exigentes demais, chatos demais, aborrecidos demais, mal humorados demais... Sempre me lembro de todas as coisas ruins deles no Dia dos Namorados, sabias? Afinal, é insuportável admitir que o abraço deles é um ninho quentinho para o aconchego da alma, que eles são adoráveis quando tratam a gente com carinho, que o olhar doce deles nos eleva à condição de rainhas! Que basta um chamado para que corram e nos dêem colo, que jamais se esquecem de mandar um recado mesmo quando atarefados, que ligam e mostram que se importam, que dizem “eu te amo” de um jeito inesquecível, que nos fazem sentir a primeira e única dentre todas as mulheres. Sem falar que nos amam de um jeito que nos fazem tocar o céu em instantes, e que se ilumina a nossa vida sobre a terra à simples menção do nome deles...
            Peguei o lencinho de papel que a moça me estendeu. Coisa ruim quando cai um cisco no olho da gente...

sábado, 9 de junho de 2012

Prisioneiros da ilusão (*)

Vera Pinheiro
            Melhor um inimigo declarado do que um amigo falso. É o que costumamos dizer, à boca larga, manifestando que estamos mais preparados para o enfrentamento daquilo que reconhecemos, ainda que não seja bom, do que para lidar com falsidades. Entretanto, é corriqueiro nos cercarmos de ilusões para não nos confrontarmos com a realidade. Uma brincadeira de esconde-esconde com as circunstâncias, fazendo de conta que elas não são reais, por medo de que nos derrotem. E temos muito medo, associado à vergonha, de sermos derrotados, porque nos incentivaram a comemorar vitórias, mas não nos encorajaram a aguentar perdas e avarias em nosso ego ansioso por vitórias.
            Às vezes, a dor de uma experiência é tão insuportável que evitamos encará-la, então empreendemos uma fuga desesperada na direção contrária e nos cercamos da ilusão de que tudo é alegria. Isso é o mesmo que negar a sombra à existência da luz, o escuro como parte da claridade, o fim que está à espera de todo começo. A negação não elimina o fato, apenas o encobre.
            Fechando os olhos ao que não nos agrada enxergar não faz encontrar as soluções necessárias e quando temos coragem de afrontar nossos sentimentos negativos, eles se dissipam. Vivermos aprisionados nas ilusões não modifica a realidade com a qual não concordamos, mas estende a sua permanência por mais tempo.
            É o caso dos amores impossíveis, por exemplo. Os que não podem se realizar, os que têm impedimentos incontornáveis, os que estão minados de dificuldades indissolúveis. Não se concretizam, simplesmente, e a gente sente que assim vai ser, porque os dois pés na realidade mostram que o caminho a dois tem um abismo que não pode ser transposto. Ou até, quem sabe, poderia ser vencido, mas demandaria mudanças radicais desanimadoras. Esse sentir é tão impregnado de sabedoria interior que se entremostra com uma razoabilidade indiscutível. Sentimos a impossibilidade e a dor que isso representa. Julgando que somos incapazes de suportar tamanho desgosto, nos trancamos a chave dentro da ilusão de que um dia poderá ser como desejamos. Nós nos fechamos a outros amores, na ilusão de que aquele amor um dia será possível.
            Nessa ilusão, que nega a realidade, não vemos outras pessoas, vedamos chances de aproximação com outros contatos, e, pior, erigimos um pódio à figura inalcançável daquele amor, contemplando-a entre suspiros de esperanças e lágrimas de saudade. E a vida, deste modo, se passa entre ausências e solidão.          
            Ocorre o mesmo fenômeno quando decidimos nos incapacitar a olhar com sincera boa vontade os que nos cercam e os que se achegam a nós. No campo dos relacionamentos amorosos, isso é um desastre! Na ilusão de que seremos felizes só se encontrarmos alguém que se enquadre ajustadamente em um perfil modelado pelo idealismo, todos os humanos se encaminham para a inadequação ao posto de amor de nossa vida. A ilusão que nos aprisiona em um modelo que não existe ou em outro que veio e já foi, nos impede descobrir a beleza que existe em cada pessoa, mesmo quando ela não retrata aquele a quem amamos mais do que todos os outros e que se tornou referencial para nós. Se quisermos nos desvencilhar desses grilhões que nos fazem reféns de um amor passado ou idealizado, é preciso tomar consciência de que o ontem não voltará, por mais que queiramos. Resta-nos, então, viver integralmente as novas pessoas que se apresentam.
            Dá-se o mesmo com o trabalho almejado. A insatisfação, se considerada negativa, não gera chances novas. No desejo de encontrar alternativas e temendo não obter respostas, rodopiamos com os temores e deles nos acovardamos. Porém, se olharmos fixamente para o descontentamento, ele pode ser resolvido. Do contrário, negando-o para não promover desordem no conforto de “ao menos ter um trabalho”, se perpetuará a contrariedade, e o que se verá é alguém que tem o desprazer de trabalhar no que não gosta.
            A realidade, por mais aterrorizante que nos pareça, jamais será mais feia do que aquilo que não é real, embora seja belo. Olhemos para as nossas agonias sem sofrimento, mas assumindo o imperativo contato com que são. Sem negar as dores, que possamos nos conectar com elas para percebermos o seu significado. Deixemo-las passar, não nos aprisionando à ilusão de que não existem. Existem, sim, mas são meramente hóspedes, transeuntes, pois o que essencialmente nos habita é a felicidade.

(*) Crônica publicada na ediçao de 9/10 de junho de 2012 do jornal A Razão, de Santa Maria, RS.