sábado, 16 de abril de 2011

Em torno da mesa (*)

Vera Pinheiro
            Com o passar do tempo, mudam os hábitos. Alguns dos melhores hábitos se perdem ou são substituídos por outros em uma sociedade que se modifica apressadamente, sem avaliar se o novo é bom ou nem tanto para o convívio humano e para a qualidade de vida. Adotamos hábitos divergentes também por força das circunstâncias, que nos compelem a mudanças emergenciais, e há casos em que não chegamos a percebê-las acontecendo. Quando nos damos conta, já deixamos de lado o que fazíamos e seguimos hábitos que adquirimos ou nos foram impostos sem contestação. Às vezes, eles resultam de mera imitação, o que é lamentável, tudo para não nos colocarmos em oposição ao que os outros fazem, embora afrontando o de que gostamos. No bojo disso, a necessidade de validação dos outros ao que nós somos, uma espécie de aprovação ao nosso jeito de ser, do que muitos não abrem mão e não conseguem ficar sem. Afinal, é bastante custoso ficar na contramão do comportamento dos nossos conviventes, e poucos têm tutano para se esquivar disso e ser o que essencialmente são, gostem os outros ou não.

            Assim se dá com o que ocorre em torno da mesa. Que mesa? As famílias diminuíram e o tamanho da mesa acompanhou a evidência de que há menos pessoas em casa do que havia antigamente. A pressa encurtou as dimensões da mesa e a falta de tempo a fez menor ainda! Por que ter uma mesa grande se a família é pequena e os amigos se reúnem em botecos ou em restaurantes para não dar trabalho à dona da casa, ocupada demais com a vida fora dela? Diminuíram as mesas, e muitas das que existem são meros ornamentos na cozinha e na sala de jantar. Ninguém usa, elas só ocupam espaço e fazem parte da decoração, que ninguém tem tempo de apreciar.

            “Quem come em pé não alcança o que quer”, dizia mamita, que não admitia a gente comendo com um pé à porta de saída, mal engolindo o que ela cozinhava com esmero à época em que era completamente dona de si, voluntariosa e com uma lição na ponta da língua para todas as situações. Sinto saudade de quando ela arrumava a mesa e dispunha milimetricamente os legumes, que pareciam formar uma mandala perfeita a enfeitar a mesa. Ela colocava a refeição para nós duas e, seguindo-a, arrumo a mesa para mim e minha filha. Considero que somos nossas melhores convidadas de todos os dias, bem como tenho como indispensável nossa conversa em torno da mesa em duas refeições diárias, o café da manhã e o jantar, ainda que esse último seja instável como o clima de Brasília. Ou seja, nem sempre é possível de se realizar e é cancelado em razão de compromissos ou por ser tardio para uma refeição mais elaborada. Nesse caso, está abolido ou se transforma em modesto chá com torradas que não atrapalha o sono nem pesa no estômago. Nós nos curvamos às particularidades da agenda de cada dia, mas nos esforçamos em dedicar alguns dias da semana a almoços em família, lamentando a impossibilidade das presenças de meu filho e de sua esposa, que moram em outra cidade.

            E, vejam só! Muitas pessoas de uma família moram na mesma cidade e não se visitam! Desconhecem o que é distância, ignoram o significado de saudade e não se importam em estreitar laços de afeto, tudo o que resta quando nos vamos desse mundo, além das obras do bem que fizemos! Quantos se reúnem em torno da mesa para compartilhar refeições e amor? Quem se ocupa em deixar ao menos um dia da semana para estar com os familiares, porque não há pessoas mais importantes do que aquelas que o amor consagrou em irmandade?

            “Não tenho tempo!”. Essa é a desculpa sem consistência de quem não quer se envolver com compromissos familiares, pensando que é perda de tempo dedicar espaço a pais, irmãos, primos, tios e avós, essa confraria que o poder divino organizou e que ninguém devia desprezar. Os parentes fazem parte da grande teia universal que não escolhemos tecer, mas que está ligada a nós por invisíveis, significativos e incompreendidos vínculos. Voltar a se reunir em torno da mesa é mais do que um hábito a ser retomado. É um estar junto que entrelaça vidas. A comida é só um pretexto. A gente fica junto por querer, e num espaço sagrado como esse, a mesa, pode contar com as bênçãos divinas às sinceras intenções de afetividade, quando a sacralização se dá. Quem duvidar, que experimente! Não vai se arrepender!
            (*) Crônica publicada no jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS, edição de 16 e 17 de abril de 2011.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Meu e-mail

Vera Pinheiro
Outro dia alguém me perguntou se estava trabalhando depois que saí da Vice-Presidência da República. E como! Ando tão ocupada em casa que não tenho tempo de trabalhar fora. E se a isso chamam de aposentadoria, então, para ter folga, precisarei voltar ao mercado de trabalho.

Andam pedindo o meu e-mail porque o que divulguei - verapinheiro@verapinheiro.net - não recebe mensagens. Desculpem o mau jeito! É que ele está abarrotado de mensagens e eu, sem tempo de moderá-lo. Lotou tanto que não recebe mais nada!

Vou dar outro e-mail para contato, mas só vou responder mensagens até a próxima terça-feira à noite. É que estou de mudança para um lugar fora da civilização e ficarei sem telefone até que possa saber como é que vou instalar um que seja substituto do grito do Tarzan (desta Jane que vos fala, no caso). Não sei quanto tempo ficarei fora do ar.

Escrevam para verinhapinheiro@uol.com.br e, por amor, não mandem mensagens tipo spam. Só vou responder mensagens pessoais, o resto vou deletar sem dó nem piedade!

Tenho tantos assuntos para compartilhar, mas não posso agora. Sequer tenho espaço no meu dia para compartir o que me vai no coração. Nem pude contar o quanto choramos, Camila e eu, com a morte de um dos nossos gatos, o Ioddy. Aliás, nem contei que tínhamos adotado mais um felino. Antes de ficar out espero contar essa história e mostrar fotos dele.

E se teve lágrimas, vivi muitas alegrias nesse período. Fui à festa de um amado Rei e de uma amada menina superpoderosa. Aguardem!

E agora, amados e amadas, preciso ir. Hoje é de dia de escrever a crônica da semana e enviá-la para o jornal. Para uma verinha aposentada, estou ocupada demais, demais da conta!!! Fui! Beijos e amassos.

sábado, 9 de abril de 2011

A cama

Vera Pinheiro           
            Nela depositei o corpo cansado e muitos desejos que tinha. Chorei por vezes em silêncio e, de outras, sufoquei gritos de prazer para não escandalizar os vizinhos. Aninhei, em noites insones, toda a saudade guardada, angústias sem solução e as melhores lembranças do amor. Partilhei divertimento e a alegria de estar junto na eternidade de um momento que se torna inesquecível por ser bom. Brinquei de ser feliz, ri muito e me distraí com felinos que, ao contrário dos homens, não se assustam com minhas garras; mostram as deles, mas não me ferem.

            Carreguei a minha cama de ilusões. Esperei demais por quem não veio e por alguém que não voltou. Tentei, a custa de muito esforço, tirar o cheiro amado dos lençóis e, que bom, eu consegui! Da cabeça, levou tempo. Do coração, um pouco mais. Até que enfim, e já não era sem tempo, desapeguei do significado da cama que acompanhou a transição da fase da mulher madura para a minha “melhor idade”.

            Tudo novo na existência! Renovei o que podia e com o impossível de mudar me conformei. Do que não deu felicidade, me desfiz. Do que atravancava a memória e as emoções, me libertei. Rasguei fotos, doei presentes de ex, queimei reminiscências imprestáveis para a história de uma vida. Tirei fora muitas provas de que amei quem não merecia para não dar exemplo ruim às netas que, um dia, terei. Que as mulheres da família aprendam comigo a amar, sim, claro, mas, também, a se recobrarem das perdas, desilusões, amargores e traições, tal como fiz. E que os homens da sucessão sirvam de modelo de como tratar as mulheres, contribuindo para que sejam – elas e eles – felizes.

            O desapego é a palavra da hora! Do tanto que acumulei, grande parte perdeu serventia e sentido, não tem valia ao futuro. Alguns sentimentos igualmente descartáveis ainda se mantinham em mim. Uma e outra frustração, uma briga que não quis ter, um desafeto que preservei, certa tristeza que alimentei, uma dor que não curei. Deixei que todo esse entulho se fosse para liberar espaço e me fazer livre. Fiquei com a alma leve para voar outros sonhos na garupa das vontades.

            Fiz um balanço geral do que me era valioso e do que devia abandonar, do que podia jogar no lixo ou conservar, do que era agradável me lembrar e do que seria proveitoso esquecer. Mas e a cama?! Ah, aquela cama tão antiga e ainda bonita, como gente que envelhece com saúde e adquire nova beleza.

            Ao longo de duas décadas e uns anos, troquei o colchão e o par, e ambos foram duradouros, mudei os tons e cores das cobertas conforme o estado de ânimo e, na maior parte do tempo, dormi sozinha, entre lamentos de solidão e alívio por não ter com quem me deitar. Nisso não há o que controverter, pois, humana, vivi na gangorra emocional, enquanto estive apaixonada. Hoje são outros tempos e eu, uma mulher renovada! Posso até dormir sozinha, doravante, que ninguém ouvirá sequer um suspiro de queixume!

            Não foi fácil a doação e, diria mesmo, de todas foi a mais difícil e demorada! Aquela cama lembrançosa começou a ir-se embora quando me deu a perceber que eu dormia em um só lado, reservando a outra metade para o vazio e, quiçá, a inútil espera de irretocável companhia, e menos que isso eu não quero! Sequer desmanchava o edredom, como se uma presença adormecesse sem se mexer ao meu lado, por dias, meses e anos a fio!

            Em busca de encorajamento, consultei várias amigas solteiras, descasadas e viúvas para saber como elas dormem sem um parceiro diário em seus pelegos. A maioria adora um aconchego, mas nem sempre o tem. Outras preferem a rotatividade amorosa que oscila entre a liberdade e a independência, com a vantagem de não prestar serviços de mesa e banho, que são trabalhosos e sem alternativas que funcionem bem dentro de casa o tempo todo.

            Quanto à cama, há divergências. Algumas amigas minhas continuam em cama de casal onde se espicham de corpo inteiro, podendo adotar posição atravessada sem que ninguém reclame e dividindo-a com quem bem lhe aprouver. Outras, porém, tão logo desfeito o vínculo com o par, trocaram a cama larga por uma de solteiro. Solteiríssimas, essas mulheres passeiam na casa deles e dormem lá quando os desejam. Não lavam louça de manhã e não arrumam a casa onde são hóspedes. Pegam os seus pertences e dão tiau com um beijinho de “a gente se vê”. Eles adoram e elas acham cômodo. Quanto a mim, preciso mesmo só de um lado da cama. Por que ter dois se não uso?!

            (*) Crônica publicada no jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS, edição de 9 e 10 de abril de 2011.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Nos anais

Vera Pinheiro
Na sessão de 31 de março, da Câmara de Vereadores de Santa Maria, RS, foi proposto que minha crônica "O José Alencar que conheci", publicada no jornal A Razão sobre o vice-presidente, seja colocada nos anais da Casa. A proposição foi da vereador João Carlos Maciel, a quem não conheço, mas agradeço a gentileza, que me comove. Graças!

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Quem era ele? (*)

Vera Pinheiro
Raios cruzavam o céu e a chuva caía forte. Trovões entrecortavam o silêncio, abafando a música de um CD barato comprado em banca, embutido em revista que prometia métodos práticos para acalmar as emoções. A escuridão só era quebrada pelos faróis dos carros que vinham em sentido oposto, e eu mal conseguia ver a sinalização da pista molhada, mas seguia adiante, embora a velocidade abaixo do permitido. Meu coração trepidava pelo medo que sempre senti das tempestades, inclusive da vida, que eu preferia tranquila, sem sobressaltos, embora em outros tempos tivesse gostado de coração à boca, por paixões sem cura, na expectativa de que tudo desse certo, mas nem sempre dava. A quilometragem de volta para casa me parecia mais longa, mas o caminho era o mesmo. A rota era conhecida e surpreendente ao mesmo tempo. Tudo não era de todo igual ao que eu vira antes, porque se movimentavam em mim questionamentos sem respostas, que perpassavam as inquietudes de querer compreender a máxima extensão do ser humano, ainda tão distante do meu entendimento.

Será que ele sentia algum medo, ainda que não revelasse? Teria dores além das físicas? Quem era aquele homem que despertava um sentimento nacional de solidariedade; que se configurou como alguém capaz de botar a pátria de joelhos, em orações por ele; que mobilizou o país e inteiramente o comove em sua morte; que encantou pessoas de todos os credos, partidos e idades; que se tornou símbolo de fé, otimismo, superação e confiança, a despeito de todas as probabilidades e diagnósticos, que ao mais comum dos mortais faria despencar em lágrimas de sofrimento e tornaria refém da desesperança? Das poucas certezas, a de que ele era avesso ao perfil de político como o senso comum concebe depois de tantas decepções, falcatruas e corrupção à vista, delineando as feições da raça.

O mineiro José Alencar Gomes da Silva, aos olhos da nação, perdeu a sua naturalidade de Muriaé para ser apenas – ou tudo isso – um brasileiro, e dos melhores, amado de ponta a ponta de um Brasil completamente sem fronteiras nem limites em um sentimento nunca dantes tão unificado por alguém que ocupava o cargo de vice-presidente da República, até então visto como coadjuvante do cenário máximo que alguém pode alcançar no Poder Executivo. Quem era ele, afinal?
Seis anos de convivência não foram bastante para traçar um retrato dele e, sobretudo, não justificavam de pleno o carinho que brotou espontâneo por um superior hierárquico, a quem vi pela primeira vez numa apresentação formal, de quem chega sem saber exatamente o que fará, mas disposta, como eu estava, a enfrentar o desafio de uma estrutura desconhecida, e a dela dar conta, como dizem os mineiros.

No primeiro contato me deixei cativar pelo olhar profundo de José Alencar e pelo seu riso fácil e acolhedor, mas ele não deixou dúvida de que, antes de me receber em seu gabinete amplo, já havia tomado todas as informações que lhe dessem a mínima garantia de que pudesse confiar no meu trabalho, e isso não era tudo. Só mais tarde pude vislumbrar, ainda que parcialmente, e por todos não poderia falar, o que seria assessorar a Vice-Presidência da República, que exigia a celeridade de um ambiente de Redação de jornal em fechamento de edição de sexta-feira, a urgência da informação em tempo real e o cumprimento de pautas com mais habilidade e presteza do que uma reportagem com manchete de capa, porque tudo o que eu escrevesse não seria a minha palavra, mas a própria voz do vice-presidente da República, o que requeria conhecer seu pensamento sobre todos os assuntos e, mais que isso, seu jeito de se expressar, sua linguagem, seu humor precioso, sua vasta cultura e sua sabedoria galgada em experiência de toda uma vida.

O primeiro passo seria esquecer, quase por completo, do cargo de José Alencar Gomes da Silva. Simplesmente esquecer quem ele era. Caso me lembrasse com mais frequência do que o necessário e recomendável, poderia perder a intimidade com as palavras e me deixar embotar pelo esplendor do cargo dele, que ofuscava tudo em torno e fazia pessoas se quedarem em paparicos e vaidades. Precisei não lembrar para quem eu trabalhava para poder cumprir todas as demandas vindas dele e continuar sendo a minha essência profissional e, sobretudo, humana. Ao vê-lo morto chorei a saudade da pessoa admirável que a vida me permitiu conhecer e senti uma saudade imensa, desde então.

 (*) Crônica publicada no jornal A Razão (www.arazao.com.br) de Santa Maria, RS, edição de 2 e 3 de abril de 2011.